“Os guerreiros mais fortes são estes dois: tempo e paciência.” A frase de Tolstoi, um gigante da literatura russa que era também um pacifista, em Guerra e Paz, podia ser um bom lembrete para Vladimir Putin. Ele descobriu a contragosto que, ao contrário do que acontecia nos tempos em que a obra-prima foi escrita, não tem nenhuma das duas coisas a seu favor. No século XXI, onde exércitos digitais lutam combates invisíveis e as guerras, e os seus efeitos, são transmitidos em direto pelas redes sociais, é tudo mais rápido e intenso. A propaganda e a manipulação funcionam pior, e a opinião pública de todo o mundo exerce uma pressão maior e mais imediata. Escasseiam precisamente tempo e paciência.
Costuma dizer-se que Putin é um estratega, um jogador de xadrez, mas na verdade a comparação que lhe assenta melhor é a de imprevisível lutador de judo, desporto onde é especialista. Desfere os golpes quando apanha o que lhe parece ser o momento certo, usando a força, ou a falta dela, do adversário. Acontece que Putin subestimou o inimigo, subavaliou a sua capacidade de mobilização interna e externa. Imaginou uma Ucrânia frouxa e uma Europa enredada nos seus dilemas existenciais e contradições, mais uma vez incapaz de responder com firmeza a uma ameaça. E pensou que os Estados Unidos, depois de uma saída desastrosa do Afeganistão, quisessem agora tudo menos ver-se envolvidos em novos conflitos.
Enganou-se em várias frentes. Esta não foi a brincadeira no parque que encontrou na Crimeia (2014) nem na Geórgia (2008). A Ucrânia resiste com todas as forças, de uma forma que comoveu o mundo. Putin encontrou pela frente um bailarino e comediante que se agigantou. Qual David contra Golias, a sua força, a sua coragem, a sua autenticidade e a sua forma de comunicar valem mais do que centenas de tanques russos. Zelensky, o homem que disse uma das mais bravas tiradas de guerra de sempre (“não preciso de boleia, preciso de munições”), é o verdadeiro super-herói dos tempos modernos, o líder perfeito para mobilizar os ucranianos e recolher simpatias em todo o mundo.
A Europa e os Estados Unidos, juntos, responderam com bombas atómicas económicas: congelamento dos ativos de Putin e dos seus amigos, a saída do SWIFT e medidas restritivas para impedir que o banco central russo use as suas reservas financeiras. Medidas que determinaram a desvalorização a pique do rublo nos mercados cambiais e vão trazer perdas substanciais à economia russa, não sem danos colaterais para o mundo.
Esta guerra pode demorar meses, anos. Mas aconteça o que acontecer adiante, Putin sai derrotado. É um imperialista falhado. A Ucrânia mostrou que não tem qualquer vontade de se unir à Rússia e sairá disto mais próxima da Europa. Se o Kremlin insistir numa tentativa de ocupação, pode transformar-se no que foi o Afeganistão para Brejnev, e ficar como pedra no seu sapato durante anos, trazer danos avultados e corroer a sua imagem interna. E com a teima na Ucrânia, Putin corre o risco de perder a Rússia. A taxa de aceitação de um autocrata pode mudar da noite para o dia rapidamente. Já foram detidos mais de 6 000 russos que se manifestaram contra a ocupação, e ainda mal começaram a sentir no bolso os efeitos das pesadas sanções impostas pelo Ocidente. As vozes de contestação e as críticas a esta oligarquia serão cada vez mais impossíveis de conter.
Da desordem infligida por Putin, surgiu agora uma nova ordem mundial. Uma ordem com cada vez menos tolerância para ditadores aventureiros e sanguinários, onde a Europa tem uma voz mais grossa e mais ativa. Putin conseguiu numa semana o que muitos andavam a ansiar há décadas: líderes europeus com mais coragem e força para assumir um papel preponderante no tabuleiro mundial e em sintonia com norte-americanos e britânicos.
Nesta nova ordem mundial, a dependência da Rússia, sobretudo energética, será com elevada probabilidade menor. 70% das exportações russas de gás, cuja torneira em breve poderá ser fechada, vêm para a Europa e a Alemanha terá de encontrar alternativas. E a Rússia ficará cada vez mais sozinha, sentada em cima de uma máquina de guerra, de um sistema político iliberal e de uma economia isolada e pequena (do tamanho da de Itália e com um PIB per capita muito mais pequeno do que o português). Se Gorbachov foi o pai do Glasnost e da Perestroika, Putin, com a sua ambição desmedida, pode bem ficar para a História como carrasco da Rússia moderna. Resta saber até onde a sua alienação o (e nos) vai levar pelo caminho.