Nos dias de hoje, o balcão, seja real ou virtual, tem uma importância fundamental para qualquer cidadão: é ele a porta da frente do Estado para os serviços que presta e para os quais pagamos os nossos impostos. Há muitos balcões por esse País fora, desde os grandes balcões centrais aos microbalcões locais. Todos estes balcões podem ser determinantes para as pessoas, porque mesmo nas mais pequenas coisinhas para as quais precisamos do Estado – seja a certidão, o comprovativo, o processo ou o licenciamento – pode-se ter a vida facilitada ou amplamente transtornada. Os pequenos poderes, que podem ser enormes empecilhos, são exercidos nos milhares de balcões que temos espalhados pelo País. A negligência, os erros, o dolo acontecem, na esmagadora maioria dos casos, aos balcões. Logo, o que se passa aos balcões importa – e importa muito.
São os políticos que percebem isso, aqueles que entendem a essência da governação: é preciso pensar nos grandes temas e nas linhas estratégicas, sem descurar – e sem se desresponsabilizar – do que se passa nos microbalcões da sua esfera de competências.
O caso do envio de dados pessoais dos manifestantes anti-Putin para a Embaixada da Rússia por parte da Câmara Municipal de Lisboa, noticiado na semana passada, bem como a partilha de dados que também aconteceu de ativistas com as autoridades de Israel, China e Venezuela, é sintomático não só dos efeitos gravíssimos que um ato burocrático pode ter, como da falta de importância que se pode dar ao que se passa nos balcões.
O caso é grave, a todos os níveis: o exercício pleno do direito à manifestação está constitucionalmente protegido, e a divulgação dos dados dos manifestantes, além de violar as leis de proteção de dados, coloca em causa esta garantia. Ninguém duvida de que a partilha de informação com embaixadas de países que reprimem a contestação e perseguem opositores pode colocar em risco a segurança dos manifestantes e das suas famílias.
Fernando Medina, em nome da CML, pediu desculpas pelo erro, abriu uma auditoria e afirmou terem sido corrigidos os procedimentos de forma que tal não volte a suceder. No entanto, muitas questões fundamentais permanecem em aberto: com base em que normas é que esta partilha aconteceu, se a “lei antiga” de 1974 invocada não obriga a que tal aconteça? A que título é que a informação foi partilhada e por quem? Quem tinha conhecimento deste procedimento? Desde quando é que a situação era conhecida? Como serão ressarcidos e protegidos estes ativistas? Porque é que o Ministério da Administração Interna e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, informados em março, ignoraram essas queixas?
Tudo dúvidas relevantes sem resposta, desvalorizadas pelo primeiro-ministro, que respondeu de forma leve e mais uma vez afastou quaisquer responsabilidades políticas. “Não vejo como possa haver responsabilidade política de algo que não passa do balcão. Nenhum político teve qualquer tipo de intervenção nessa matéria, nem sequer conhecimento”, disse o primeiro-ministro. Pior a emenda do que o soneto: ao balcão o que é do balcão, à política o que é da política? Errado. Um primeiro-ministro tem de saber que tudo o que se passa aos balcões é responsabilidade da política.
Está mais uma vez comprovado que o conceito de responsabilidade política de António Costa se restringe à responsabilidade direta de titulares de cargos públicos. Tudo o que se passa abaixo deles nada tem que ver com os políticos nem os afeta. Abre-se inquérito ou auditoria, engonha-se a coisa por uns meses, segue-se adiante para o caso seguinte, assunto arrumado. Assim está-se bem: a política e os políticos ficam a assistir… ao balcão.