O mundo está mesmo um lugar estranho. Na anterior Guerra Fria, a original, contava-se o número de ogivas nucleares dos dois lados para se avaliar o equilíbrio bélico entre norte-americanos e soviéticos. Na nova Guerra Fria, a que se está a iniciar, norte-americanos e chineses mostram-se, por enquanto, mais empenhados em contar o número de seguidores que as suas empresas tecnológicas conseguem reunir nas redes sociais. Parece uma anedota mas é mesmo verdade: depois da guerra comercial, com a imposição de tarifas a penalizar o comércio entre os dois gigantes, da troca de argumentos sobre o futuro de Hong Kong e das acusações mútuas acerca da origem da pandemia do novo coronavírus, o atual campo de batalha entre os EUA e a China é, agora, o surpreendente TikTok, a aplicação que conheceu um êxito quase instantâneo entre os adolescentes de todo o mundo, com as suas ferramentas intuitivas para produzir vídeos curtos e um algoritmo capaz de “adivinhar” as preferências dos utilizadores.
A verdade é que nada disto nos devia deixar admirados. O que a polémica com o TikTok clarifica, e de forma absoluta, é que as redes sociais não são apenas plataformas que permitem aos utilizadores partilhar o que quiserem entre amigos ou seguidores virtuais. Por detrás de cada vídeo de gatinhos, de um texto indignado ou de uma foto “fofinha”, estão, isso sim, milhões e milhões de dados que, depois de armazenados e trabalhados, permitem perceber comportamentos coletivos ou até adivinhar como as pessoas irão reagir perante determinados estímulos – além de, como descobrimos, poderem também influenciar eleições.
As redes sociais têm um único alimento: a recolha de dados pessoais de quem as utiliza. Com esse manancial de informação ao seu dispor, podem depois segmentar os vários tipos de consumidores, de forma a dirigirem as campanhas de publicidade de milhões de anunciantes. Sempre num círculo vicioso, sob grande secretismo e quase sem regulação: quantos mais dados forem recolhidos, melhor será a eficácia do seu algoritmo na definição dos alvos e no conhecimento das populações.
As redes sociais são hoje, por isso, um dos campos de batalha em que se joga o conflito entre Washington e Pequim pela hegemonia tecnológica do mundo, porque os dados pessoais que elas recolhem e armazenam são fundamentais para o desenvolvimento da nova era da Inteligência Artificial, num planeta muito mais conectado, através da rede 5G (outro campo de conflito entre EUA e China) que permitirá ligações instantâneas e um muito maior processamento de informação.
Durante anos, o conflito esteve adormecido com a criação de dois mundos paralelos na internet, em que as empresas de software norte-americanas quase saíram do mercado chinês (à exceção da Microsoft) e em que Pequim, por seu lado, foi reforçando o isolamento dos seus internautas face ao resto do mundo. Enquanto os norte-americanos compravam na Amazon, os chineses desenvolviam o Alibaba; proibidos de aceder ao Facebook, os chineses faziam do WeChat uma aplicação usada para comunicar mas também para quase tudo o resto, incluindo comprar com o seu telemóvel sem necessidade de dinheiro físico. Contas feitas: nem Washington recolhia dados dos consumidores chineses nem Pequim conhecia os hábitos da população americana.
Ora, a aparição do TikTok criou um desequilíbrio inesperado. Pela primeira vez, uma aplicação chinesa conseguiu tornar-se um fenómeno global, sendo usada por mais de mil milhões de pessoas, das quais mais de 100 milhões só nos EUA. Agora que se sabe que, em 2016, os dados extraídos do Facebook pela Cambridge Analytica referentes a 80 milhões de norte-americanos foram fundamentais para a vitória de Donald Trump, há uma pergunta que surge de imediato: o que podem fazer os donos dos dados referentes a esses 100 milhões de norte-americanos que gostam de partilhar vídeos no TikTok?
As regras da Guerra Fria dizem que, para resolver o conflito, será necessário restabelecer o equilíbrio. É o que parece estar a acontecer. Mas a guerra, essa, vai continuar. Porventura, até com mais um vídeo no TikTok…
(Editorial publicado na VISÃO 1431 de 6 de agosto)