“Não creio que o tempo
Venha comprovar
Nem negar que a História
Possa se acabar
Basta ver que um povo
Derruba um czar
Derruba de novo
Quem pôs no lugar
É como se o livro dos tempos pudesse
Ser lido trás pra frente, frente pra trás
Vem a História, escreve um capítulo
Cujo título pode ser Nunca Mais
Vem o tempo e elege outra história, que escreve
Outra parte, que se chama Nunca É Demais
Nunca Mais, Nunca É Demais, Nunca Mais
Nunca É Demais, e assim por diante, tanto faz
Indiferente se o livro é lido
De trás pra frente ou lido de frente pra trás”
(…).
A letra de Fim da História, de Gilberto Gil, é de 1992 – por altura em que se dizia que estava encontrado o modelo funcional para a paz e prosperidade nas sociedades liberais –, mas podia ter sido escrita hoje, na semana em que o Brasil dá um passo atrás na sua democracia. Gil parecia saber que o curso da História, pelo menos no país que o viu nascer, não seria favas contadas. Tal como Caetano Veloso e Chico Buarque, foi um dos que sentiram na pele o que é a opressão de um regime totalitário. Passou longos períodos exilado na Europa, durante a ditadura brasileira que se arrastou entre 1964 e 1985, e foi agora um dos vultos da cultura brasileira que fez campanha contra Jair Bolsonaro, o Presidente eleito do Brasil, com medo que a História se viesse a repetir.
De nada serviu esta mobilização das elites culturais, cada vez mais distantes dos anseios e vontades dos povos: Bolsonaro recolheu a confiança de quase 58 milhões de eleitores, votos dos conservadores e evangélicos, é certo, mas sobretudo das vítimas do medo e da criminalidade, dos saturados da corrupção, dos desalentados, dos desesperados. Não foi Bolsonaro que ganhou, foi um visceral antipetismo que venceu. E agora o que vem aí, ninguém sabe.
A verdade é que a caixa de Pandora está aberta. Em causa, mais do que uma disputa entre ideologias de esquerda ou de direita, está a sobrevivência dos valores democráticos e dos princípios fundamentais de um Estado de Direito. Ninguém poderá dizer que não sabia ao que vinha Bolsonaro. Ninguém se poderá admirar que, em nome da ordem, do progresso, da família e de Deus, meta na gaveta a justiça, a igualdade e a solidariedade. Todo o discurso que lhe é conhecido o legitima, tal como a perseguição política, a tortura e as execuções sumárias. Serão suficientemente fortes as instituições da jovem democracia brasileira para o refrear, num sistema político e social altamente corrompido desde as bases? Tenho dúvidas.
Os dados estão lançados, mas o pior dos males está feito. Cumpra Bolsonaro ou não o que prometeu, seja ele mais ou menos autocrático, estão irremediavelmente normalizados o ódio e a raiva. Está neutralizado o discurso racista, xenófobo e sexista. Está aberto o caminho da desumanização social e política. Estão enfiados num saco e chutados para canto os valores da tolerância e da fraternidade.
Perdeu-se o pejo em assumir posições que se pensavam politicamente incorretas, estabeleceram-se novas bitolas do aceitável. Hoje, tudo é admissível, não há valores nem territórios sagrados de respeito. E todos ganham novo alento para bradar a sua intolerância e as suas ignomínias ao vento. Está aberto o caminho para um Bolsonaro em cada esquina.
Nos Estados Unidos da América, 12 críticos de Trump foram na semana passada presenteados com pacotes-bomba artesanais e não morreram por sorte. Por agora, no Brasil, é ver crianças, jovens e adultos a celebrarem o novo Presidente com os dedos a simular pistolas em riste, festejando a vitória, disparando sobre inimigos invisíveis. São tristes os augúrios do que pode estar para vir. Será difícil voltar a desarmar esta bomba de ódio.
(Editorial da VISÃO 1339, de 31 de outubro de 2018)