Depois da crise de 2008, grande parte da população dos países ocidentais viu na palavra liberalismo um sinónimo de nome feio. Muitos esqueceram-se (ou nunca perceberam) de que nele e nos seus ideais de liberdade, igualdade, justiça, propriedade privada e livre comércio assentam os valores que consubstanciam as nossas democracias. Toldados pelos resultados desastrosos de um sistema mal entregue a si próprio e à ganância e à arrogância humana, muitos viram no liberalismo a culpa de todos os males do mundo. O problema é que, como diria Churchill a propósito da democracia, ainda não se inventou nada melhor. Mesmo que abalado nos seus alicerces quando a ele se somou o prefixo “ultra”, é a tradição filosófica do liberalismo, por oposição ao conservadorismo, ao fascismo e ao comunismo, que cimenta as sociedades democráticas. Foi neste pressuposto que, nos últimos meses, se sucederam vários livros e artigos que se dedicaram a pensar o que vai mal com o liberalismo e porque importa, afinal, a todo o custo salvá-lo.
O mais importante de todos é, sem dúvida, o de Francis Fukuyama, uma espécie de superstar meteórica entre os pensadores contemporâneos que, há 30 anos, de forma algo arrogante (e quase inocente), declarou o fim da História por estar encontrado o sistema perfeito em que a paz e a prosperidade estavam finalmente asseguradas pelas democracias liberais. Veio agora explicar que afinal a história tem mais que se lhe diga e… não acaba aqui. Fukuyama descobriu que os homens teimam em querer sempre mais e melhor e em passar a ver problemas em questões perante as quais antes se limitavam a encolher os ombros. No seu novo livro Identity: The Demand for Dignity and the Politics of Resentment (ainda não publicado em Portugal), vem explicar porque a exigência de reconhecimento e dignidade veio abalar os fundamentos do liberalismo ao dar espaço ao que chama política do ressentimento. Para Fukuyama, muito do que se passou no mundo nos últimos anos, com o (re)surgimento dos populismos, dos nacionalismos, dos autoritarismos e dos conflitos religiosos, pondo em risco a própria democracia, se deve à luta pelo reconhecimento das identidades, uma espécie de conceito-mestre que unifica o que se passa na política global.
As democracias liberais correm pois o risco de se autodestruírem graças à combinação explosiva de dois fatores: uma arrogância sobranceira face aos elos mais fracos que estão nas margens de uma sociedade pouco igualitária e uma ignorância de como se conquistaram os valores estruturais democráticos e o quanto são, afinal, frágeis. Se à direita os líderes políticos se “bunkerizaram” e distanciaram das massas, à esquerda os interesses destas classes e a luta pela melhoria das políticas sociais foram trocados pela defesa de causas fraturantes e culturais de nicho. Salvar o liberalismo depende da forma como se conseguir combater estas causas, das quais fenómenos como Trump, Orbán e a AfD são sintomas.
Na última semana, uma voz de peso veio juntar-se ao coro de pensadores que exigem um repensar do liberalismo a bem da sua (nossa) salvação. A The Economist, apontada por muitos como conservadora, elitista e por vezes pretensiosa (e, quanto a mim, extraordinária), escolheu fazer do seu 175º aniversário um manifesto pela renovação do liberalismo. Conclui, num brilhante editorial que quase soa a mea culpa, que o mal é o fosso cavado pelas elites liberais face aos problemas do homem comum. É por causa deste fosso, e da falta de respostas que foram dadas aos problemas do homem comum, que muitas populações europeias e norte-americanas começaram a desacreditar na capacidade do sistema de lhes resolver esses problemas. E a optar, em consequência, pelas escolhas disruptivas antissistema que apontam soluções fáceis. “Os liberais esqueceram-se de que a sua ideia fundamental é respeito cívico para todos”, resumiu a The Economist. Segundo a bíblia dos elitistas, para salvar o liberalismo é essencial que as elites saiam da bolha em que se colocaram, desçam dos pedestais e passem a ouvir e a trabalhar para o cidadão comum – exige nada menos do que dignidade. Será ela ou a morte do liberalismo e o advento de sabe-se lá o quê.
(Editorial da VISÃO 1333, de 20 de setembro de 2018)