Em Inglaterra, a violência ligada ao futebol continua a ser um problema. Mas é precisamente por terem consciência dessa realidade, e da sua gravidade, que os britânicos resolveram outro problema: o de como lidar com o holiganismo e com todos os grupos, organizados ou espontâneos, que aproveitam o futebol para manifestações de força e de ódio. A solução britânica é simples e assenta em poucos pilares: tolerância zero para com os infratores, justiça rápida, e a criação de mecanismos que fazem aumentar a censura social para quem não respeita as regras do fair-play, da boa convivência e do respeito pelos adversários.
Há um exemplo recente que ilustra bem esta forma de olhar – e de resolver – o problema. No dia 16 de dezembro de 2017, Raheem Sterling, avançado do Manchester City e da seleção inglesa, foi insultado e agredido a pontapé por um holigan à entrada para o centro de estágio (e, mesmo assim, nessa noite, apesar de psicologicamente afetado, marcou dois golos na vitória do seu clube). A agressão ocorreu num sábado. A queixa formal entrou na polícia na segunda-feira seguinte. Na terça-feira, o agressor, de 29 anos, foi identificado e detido, percebendo-se que já tinha um longo historial de comportamentos incorretos em estádios de futebol. Logo nessa quarta-feira foi presente a tribunal, julgado e condenado a quatro meses de cadeia, que começou a cumprir no próprio dia. Era impossível ser mais rápido: em apenas quatro dias, a justiça britânica demonstrou, publicamente, que não tem complacência para com os ataques de ódio.
Atuar desta forma rápida e eficaz tem um prémio: aquele que permite, aos fins de semana, transmitir para todos os países do mundo as imagens dos estádios ingleses sempre cheios, com milhares de famílias nas bancadas a assistir àquela que é hoje, também por isso, a liga de futebol mais rica e admirada do planeta. Mas é um prémio que dá muito trabalho, que exige um enorme investimento em segurança por parte do Estado e dos clubes, porque o holiganismo, ao contrário do que se possa pensar, não desapareceu – como iremos ver, infelizmente, no Mundial de Futebol. O que os britânicos conseguiram foi, isso sim, deixar que ele fosse uma ameaça direta, na sua ilha, às famílias que enchem os estádios da Premier League.
Isto consegue-se, repito, com tolerância zero. Até porque os britânicos aprenderam (da pior maneira) que se estes fenómenos não forem controlados à nascença podem rapidamente escalar para níveis de violência absolutamente aterradores, como se viu, no passado, nos estádios de Heysel e de Hillsborough.
Essa tolerância zero tem de ser aplicada, desde logo, num ponto relevante, mas a que, em Portugal, raramente se dá importância: a de não permitir que a paixão pelo futebol se transforme em fanatismo. E condenar, de imediato, qualquer apelo ao confronto, como se estivéssemos no meio de uma guerra.
O nosso problema é que, com a complacência de todos, permitimos que a paixão se transformasse em fanatismo. E a culpa disso nem sequer pode ser assacada ao “novo suspeito do costume”. Não, não foram as redes sociais que “normalizaram” o fanatismo – embora, entretanto, tenham contribuído para o ampliar. O fanatismo passou a ser aceitável pela sociedade a partir do momento em que se deixou de discutir e debater o jogo, e apenas se passou a defender, cegamente e na TV, o clube a que se pertence – com a ajuda preciosa de dirigentes, advogados, médicos, empresários, políticos, jornalistas e outras figuras, cujas intervenções apenas contribuíram para normalizar o insulto e banalizar a ameaça. Isto, num país onde os jogadores estão praticamente proibidos de falar, de debater o jogo, pelas direções dos seus clubes.
Durante demasiado tempo, o País achou tudo isto normal. Agora, pelos vistos, acordou, com a invasão de Alcochete. Mas é preciso que não se volte a adormecer. Alcochete deve ser encarada por nós como Heysel foi pelos ingleses: como um ponto final na escalada do fanatismo. Até porque o risco das coisas se descontrolarem é conhecido. Em Heysel, a claque inglesa também não avançou sobre os adeptos italianos com intenção de matar. A verdade é que morreram 39 pessoas.
(Editorial da VISÃO 1316, de 24 de maio de 2018)