Uma pessoa está em frente ao computador. Sozinha, à noite, entre as quatro paredes da sua casa, procura resposta para as dúvidas mais íntimas e inquietantes neste isolamento reconfortante. Que estranha ironia esta: as pessoas confessam ao Google os mais perturbantes problemas, sintomas ou estados de alma, coisas que muitas vezes são incapazes de pronunciar em voz alta. O que fazem os motores de busca com estas nossas intimidades? Usam-nas para traçar um perfil e depois vendem-nas. A verdade é que a Google, tal como as redes sociais que frequentamos, nos conhecem melhor do que muitas vezes nós próprios nos conhecemos: cada detalhe digital das nossas vidas, cada hábito ou pequeno tique que nem valorizamos, fica registado, é processado e arquivado para potencial utilização comercial. Está a sair de casa num dia de semana às 8h30, a hora do costume, com o seu telemóvel no bolso? A Google já sabe para onde vai e alerta-o do tempo que vai demorar a lá chegar. Entrou por engano num artigo sobre pontos negros? Pode muito bem começar a ver anúncios de cremes desincrustantes ou da nova ferramenta Made in China para os desencravar. Em tempos ficou mais do que 5 segundos no Facebook a ver um vídeo de um sofá insuflável perfeito para levar para a praia? Não estranhe se esta publicidade começar a persegui-lo em tudo o que é sítio na net por onde passa. Por estes mundos de bits e bytes que fazem cada vez mais parte das nossas vidas, vamos, todos nós consumidores, nus. Completamente despidos de proteção. Somos alvos fáceis, patinhos sentados que abdicamos da nossa privacidade no momento em que usamos os serviços destes gigantes tecnológicos, commodities sem as quais já quase não sabemos viver.
Na semana passada, a Google – essa empresa que quer ser a terceira metade do nosso cérebro, como afirmou Sergey Brin –, anunciou que irá deixar de monitorizar os emails privados de quem tem conta no Gmail. O que mais espantou muita gente foi como é que raio o fazia antes: mal comparando, ninguém espera que um carteiro abra as nossas cartas e leia a nossa correspondência. Claro que a Google (ou os seus poderosos algoritmos) o faz, isso e muito mais. Deteta as palavras-chave nas comunicações privadas para depois nos vender publicidade. Está tudo lá nas condições de utilização, aquelas que ninguém se dá ao trabalho de ler. É troca por troca: vendemo-nos e abdicamos dos nossos valores, em troca de serviços muito úteis que nos oferecem. Sim, não há almoços grátis.
Não se pense que esta invasão de privacidade acontece só online. Longe disso. No mundo físico, ela também acontece um pouco por todo o lado. Das transações em multibanco que fazemos, aos sítios por onde passamos ou ligamos a um sinal de rede ou GPS, deixamos um enorme rasto digital. E há cães de caça que querem farejar o nosso perfil e explorá-lo comercialmente. Felizmente por cá, na Europa, com regras de privacidade um pouco mais apertadas do que na selva americana.
Há uma história – tão boa que parece anedota – que é sempre citada entre os “cromos” da inteligência artificial. Conta-se que a Target, uma poderosa cadeia de hipermercados norte-americana, descobriu que uma teenager de Minneapolis estava grávida antes do pai dela o saber. Tudo porque o shopping tem um algoritmo que deteta os padrões de consumo dos clientes, que ficam todos registados nos cartões de pontos (sim, estes cartões servem para isso e não só para lhe dar descontos). Este algoritmo deteta as primeiras compras que, em regra, as grávidas fazem, para a marca começar imediatamente a comunicar com elas e assim captar aqueles consumidores desde os primeiros dias. Acontece que o pai recebeu em casa os cupões de parabéns dirigidos à sua filha sem saber ainda que iria ser avô… e não ficou propriamente feliz com a surpresa. Assustador? É a vida no digital. Bem-vindos ao século XXI, este mundo onde a privacidade é um conceito de outros tempos.