Há um momento na vida em que todos somos treinadores de futebol: é quando vemos o “nosso” avançado aparecer isolado em frente ao guarda-redes adversário, a rematar, mas… a falhar o golo que antecipávamos como certo. O que correu mal?, perguntamos, estejamos no estádio ou a assistir ao jogo em frente a um ecrã, sejamos nós “fanáticos” ou simples curiosos. Nesse momento, mesmo quem diz não ligar “à bola” acaba por soltar o treinador secreto que sempre escondeu dentro de si. Mas não só: solta também o psicólogo, o preparador físico, o especialista em emoções, o técnico de estatísticas, o fisioterapeuta, o mestre da tática, enfim, todo o staff técnico de uma equipa de futebol que foi guardando, empiricamente, na sua cabeça para usar nessa ocasião. Porquê? Porque o futebol é um desporto que, à primeira vista, parece simples e ninguém precisa de se ralar muito com a complexidade que está por detrás das movimentações de uma equipa de 11 jogadores, durante 90 minutos de sprints, passes, saltos, remates, choques, defesas, desmarcações e trambolhões. Para quê complicar, se todos temos um treinador dentro de nós?
É neste estado que temos vivido nas últimas semanas. Qualquer pessoa passou a ter “estatuto e conhecimento” para dissecar a mente de Ronaldo no momento do penálti, avaliar a posição tática do resto da equipa e até dar a sua opinião sobre “basculações”, “segundas bolas”, “contragolpes” e outras recentes aquisições do léxico do futebolês. Vivemos numa espécie de Pfec – processo de futebolização em curso – que, sem darmos conta, tem abafado tudo à sua volta. O mediatismo dos seus protagonistas é de tal ordem que pouco espaço sobra para os atletas de outros desportos; os negócios à volta do futebol contam tantos milhões que desmoralizam, por comparação, quem conquista medalhas internacionais noutras modalidades.
Há um risco inerente a isto tudo: pensar que o desporto é só o futebol. Pior ainda: acreditar que o futebol é o único desporto que recompensa os seus praticantes, dando-lhes dinheiro e exposição mediática. O único em que vale a pena os pais investirem, vendo aí uma forma de garantir o futuro dos filhos. Os efeitos dessa forma de pensar começam a ser visíveis em Portugal – muitos jovens com talento desistem de carreiras promissoras em modalidades olímpicas, mas sem grande visibilidade nem remunerações, enquanto muitos outros, com muito menos talento, insistem, insistem nos relvados, em busca de um contrato milionário (que, na esmagadora maioria dos casos, nunca chegará a concretizar-se). É culpa do futebol? De modo algum, pois soube transformar um desporto maravilhoso num negócio extremamente excitante – e que ficará ainda maior, quando acabar de conquistar os Estados Unidos e a China. Mas a verdade é que esta “ditadura da bola” acaba por ter reflexos negativos no sistema desportivo português, que começa a ficar mais pobre e menos competitivo no seu todo – é notória, por exemplo, a escassez de novos talentos entre os 85 atletas portugueses já apurados para os próximos Jogos Olímpicos.
Pode o leitor perguntar, com naturalidade, o que é que uma coisa tem a ver com a outra. Acredite que deve existir uma ligação. Veja, por exemplo, quais foram os países que, nos últimos 40 anos, ganharam o Europeu de Futebol, alguns deles com uma dimensão semelhante à nossa: Espanha, Grécia, França, Alemanha, Dinamarca e Holanda. Se quer ter um bom indicador do desenvolvimento desportivo de cada um desses países, veja qual o número de medalhas olímpicas que ganharam ao longo da sua história: varia entre as 111 da Grécia e as 671 de França, passando pelas 131 de Espanha, as 179 da Dinamarca, as 266 da Holanda e as 573 da Alemanha. Em contrapartida, Portugal ganhou apenas 23 medalhas em 100 anos de participações olímpicas.
Ou seja: temos menos medalhas olímpicas do que os outros e, ao contrário deles, nunca ganhámos o Europeu de futebol. Não pode ser só coincidência