Esta é uma crónica com muitas dúvidas e poucas convicções. Dia a dia surgem problemas de complexidade crescente que não cabem em soluções a preto e branco e dificilmente serão fixáveis em leis e normas. Pelo contrário, parecem intransponíveis para qualquer código. E que podem abrir Caixas de Pandora, ou, se forem despropositadamente travadas, impor um conservadorismo injustificado.
Reparemos nas questões ligadas à lei sobre as chamadas barrigas de aluguer. Só a simplificação popularmente usada na designação da gestação de substituição já assusta: barrigas de aluguer – o que sugere haver úteros que podem ser requisitados ao dia, ainda que formalmente a custo zero. No léxico, tratamos a gestação de um ser humano por outro ser humano como se estivéssemos a falar do custo de uma incubadora, e o dramático nestas simplificações é que banalizam. Falar de barrigas de aluguer não é seguramente o mesmo que debater a gestação de substituição – o que sendo a mesma coisa não tem o mesmo peso formal.
O psiquiatra José Gameiro, em crónica recentemente publicada no Expresso online, centrou-se num aspeto. Ele não se agarrou à questão melindrosa sobre como se evitar que surja mais um negócio de aluguer do corpo, nem se questionou sobre o direito de todos os casais a terem um filho biológico – temas que só por si já dariam para longas e interessantes conversas. O problema que levantou foi o da mulher que, passados nove meses a gerar uma criança, quando dá à luz, fica obrigada a entregar aos pais biológicos a criança que tornou possível, que se desenvolveu dentro de si, que lhe deu sensações que enchem páginas de literatura. A mulher que, segundo Gameiro, viveu “um dos melhores momentos da sua vida”, de repente, mal vê o bebé, diz “aqui está, tomem lá, é vosso”. E se recusar? E se quiser romper o contrato, seja familiar, seja amiga, seja mera voluntária? É razoável deixar transformar uma mulher numa incubadora ainda que ela, adulta, o tenha consentido? Quantas coisas estão proibidas aos adultos conscientes e que só a eles dizem respeito…
Não tenho respostas inquestionáveis e gostava de ter. E era bem preciso que houvesse convicções fortes e alargadas sobre esta questão.
Mas há mais. Não sei, por exemplo, para onde caminhamos quando a ciência nos surpreende com casos como o do Lourenço Salvador, o bebé que nasceu 15 semanas depois de a mãe ter sido dada como morta (a não perder o trabalho de Patrícia Fonseca na VISÃO online, e o que publicamos na pág. 70).
Vamos ao essencial: uma mãe entrou em morte cerebral, o feto tinha 17 semanas, os médicos acharam que poderia ser salvo e aceitaram o desafio. Contrariar a natureza passou a ser o objetivo declarado. Não está em causa o feito médico, invejável e louvável, prova de enorme profissionalismo e competência. A questão é que sucessos como este antecipam a ciência ao pensamento consolidado, ou não andassem as circunstâncias sempre à frente da reflexão deontológica que impõem.
A comissão de ética do hospital avaliou a situação. Daí partiu para um pedido ao Ministério Público por forma a que salvaguardasse a “vida fetal”, protegendo-a de eventuais decisões contraditórias do pai. O pai concordou. Mas se não tivesse concordado? E se não houvesse pai? As famílias também poderiam pronunciar-se? E a criança passaria a ser responsabilidade de quem? Do Estado? Há legitimidade ética para magistrados, em nome do Estado, tomarem esta decisão? Quando a medicina quebrar novas barreiras e conseguir assegurar a vida a fetos ainda mais recentes, que vai acontecer à lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (que hoje, em casos de violação, permite a interrupção até 16 semanas – o Lourenço tinha 17)?
Não se conclua de tudo isto que a evolução da medicina não é bem-vinda, que a gestação de substituição não deve ser consentida, que a IVG deve ser proibida, que fetos viáveis não podem ser salvos. Apenas que são questões complexas e difíceis de debater numa sociedade de opiniões instantâneas que cada vez mais se cinge a uma argumentação que cabe nos 140 carateres aceites pelo Twitter