Foram recentemente divulgados pela Polícia Judiciária novos dados sobre abuso sexual de crianças em Portugal. Pese embora o alarme que provocam, a verdade é que a espuma dos dias parece não ter permitido que parássemos perante o que isto significa. De facto, ficámos a saber que, entre janeiro e junho de 2025, registaram-se 711 casos — mais de metade do total verificado em todo o ano anterior. Trata-se de uma estatística verdadeiramente sombria, mas que é também o reflexo de uma realidade persistente e devastadora, pois que cada caso representa, necessariamente, uma criança que perdeu algo irreparável. Representa também um sistema — jurídico, social, educativo — que, em dados momentos, continua a falhar em pontos que importa identificar. Sendo certo que o aumento estatístico também é reflexo de uma sociedade mais atenta, o que certo é que se deve empreender mais esforços no sentido de se assegurar de modo pleno a segurança e a dignidade dos seus membros mais vulneráveis.
Na verdade, é absolutamente incontornável que o abuso sexual infantil é uma das mais brutais formas de violência, precisamente porque atinge quem deveria estar mais protegido. Além do mais, na esmagadora maioria dos casos, o agressor não é sequer um desconhecido, mas é alguém próximo, em quem a criança confiava, pelo que a traição do vínculo de confiança ainda aprofunda mais o trauma e dificulta a denúncia. Na verdade, quando o perigo mora dentro de casa ou se esconde sob a capa da autoridade e do ascendente, o silêncio tende a prevalecer.
É, sem dúvida, verdade que hoje se denuncia mais. A consciência social evoluiu, as campanhas de sensibilização multiplicaram-se, os meios de comunicação dão visibilidade aos casos. Mas não nos enganemos: o aumento das denúncias, embora em parte reflexo dessa maior visibilidade, também revela o quanto este problema continua disseminado. E quantas vozes continuam em silêncio, seja por medo, seja por vergonha ou até por falta de confiança de que o sistema lhes dará a devida resposta.
Cremos, por isso, que, a luta contra o abuso sexual não pode assentar apenas em reações pontuais ou medidas fragmentadas. Exige uma resposta coordenada, contínua e determinada. E, acima de tudo, exige prevenção. A educação é, neste ponto, uma ferramenta fundamental — não apenas para as crianças, mas também para os adultos que as rodeiam. É fundamental desenvolver nos currículos escolares conteúdos obrigatórios sobre cidadania, direitos humanos e educação sexual, adaptados à idade, para que as crianças saibam identificar comportamentos abusivos e se sintam capacitadas para pedir ajuda.
Por outro lado, é fundamental que a proteção não se fique apenas pela infância. Este é um debate que, na verdade, importa alargar para outras camadas vulneráveis da sociedade, onde os abusos — físicos, sexuais, emocionais e financeiros — também são uma realidade frequente, embora muitas vezes abafada. Pessoas com deficiência, idosos e indivíduos com diminuição intelectual estão igualmente expostos a situações de violência, muitas vezes prolongadas e normalizadas, exatamente porque a sua voz é menos ouvida ou desvalorizada.
Nas instituições que acolhem pessoas com deficiência ou idosos, sejam lares, centros de apoio ou unidades de saúde, também se impõe a ponderação de medidas e o desenvolvimento de mentalidades que reduzam o risco de abuso, negligência ou maus tratos sobre pessoas que se encontram em situação de particular fragilidade e muito vulneráveis ao exercício do poder, ao controlo ou à agressão, sendo que dependência física, emocional ou financeira é, muitas vezes, uma das principais causas de perpetuação do silêncio, criando especiais dificuldades à denúncia. De facto, à semelhança das crianças, também os idosos e pessoas com deficiência podem correr riscos de revitimização pelo sistema, designadamente quanto não têm acesso facilitado a meios de denúncia que sejam acessíveis e seguros, enfrentando problemas tão vastos como a falta de recurso, o isolamento e a degradação, por vezes extrema, da sua saúde mental.
Neste contexto, é, assim, crucial reforçar os mecanismos de deteção precoce, capacitar os profissionais que lidam com estas populações e criar estruturas de apoio especializadas. A formação contínua de professores, cuidadores, assistentes sociais, profissionais de saúde, advogados, forças de segurança e magistrados é uma necessidade premente — não apenas para reconhecer sinais de abuso, mas também para saber agir com empatia, firmeza e eficácia.
É igualmente fundamental garantir que a legislação e sua aplicação prática protegem adequadamente todas estas vítimas, tendo em conta as suas especiais especificidades, garantindo condições mais efetivas para a apresentação das queixas, bem como para uma tramitação mais rápida e eficiente, generalizando-se os métodos de audição única, em ambiente protegido e amigável (praticamente inexistente na esmagadora maioria dos tribunais), numa prática que já se aplica a crianças, mas que importa também estender de modo mais frequente a pessoas com deficiência e idosos em situações vulneráveis.
No apoio pós-trauma, também estamos aquém do necessário, afigurando-se fundamental dotar as estruturas de apoio à vítima de condições e meios para que possam continuar, e de modo cada vez mais transversal, a cobrir as diversas situações de abuso, nas suas diferentes dimensões e de modo a alcançar todo o território, designadamente ao nível do acompanhamento psicológico, jurídico e social gratuito e de qualidade, evitando que as vítimas fiquem entregues ao abandono após a denúncia.
Também no plano digital, a ameaça é crescente. O abuso não termina nos espaços físicos — ele estende-se às redes sociais, plataformas de mensagens e fóruns online. As crianças e os jovens estão hoje particularmente expostos, mas também adultos com deficiência intelectual ou cognitiva são facilmente manipuláveis em ambientes digitais. Se, por um lado, as grandes plataformas tecnológicas têm de assumir um papel mais ativo na deteção e bloqueio de conteúdos abusivos, bem como na cooperação com as autoridades, por outro lado, o Estado tem a obrigação de promover programas de literacia digital para todos, adaptados também às necessidades das pessoas com deficiência e dos mais idosos.
Mas, acima de tudo, é essencial uma articulação real entre os vários setores: saúde, justiça, educação, segurança social, autoridades policiais e municípios. É imperativo estabelecer protocolos comuns, procedimentos claros e canais de comunicação eficazes entre todas estas entidades. A fragmentação é inimiga da eficácia — e o preço da ineficácia é pago pelas vítimas. O combate aos abusos — seja contra crianças, idosos, pessoas com deficiência ou qualquer outra pessoa em situação de vulnerabilidade — é uma causa de todos. Não pode ser deixado apenas nas mãos da justiça ou da polícia. Pais, professores, cuidadores, vizinhos, técnicos, jornalistas, dirigentes políticos e desportivos — todos temos um papel na prevenção, na denúncia, no acompanhamento e na construção de uma sociedade que protege em vez de ferir. Proteger os mais frágeis devia ser um compromisso permanente, não uma reação esporádica perante dados que provocam choque. Porque uma sociedade que fecha os olhos ao sofrimento dos seus mais vulneráveis não é apenas cúmplice. É, ela própria, parte do abuso.
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