“Trago o corpo da infância. Caminhamos juntos, eu e essa criança, pelo passeio junto ao areal. Mas sabemos ambos a distância que nos separa e que é a exata medida daquilo que nos mantem unidos. Trago no corpo da infância, o mais nobre dos meus sepulcros.” A Utopia do Não Ser de Pompeu Martins (Labirinto, 2024)
Para muitos, a poesia tem aquela cómoda característica de se gostar, ou não, como se a poesia residisse na subjetividade de cada indivíduo. Sim, podemos gostar, ou não. Mas a natureza da poesia encontra-se, nem no autor, nem no leitor, mas sim, na capacidade que ela tem de superar cada um deles. É desta forma que a poesia foi o suporte da profecia e de outros meios de ligação ao divino.
Encarnando de forma plena o sentido metafísico, porque, para lá do físico, a poesia tem a sublime capacidade de, ao brincar com as palavras, com elas encontrar a essência das coisas, delas retirar a capacidade de chegar ao âmago das ideias e dos sentimentos. Nenhum texto em prosa, muito menos um texto científico ou académico, consegue chegar à essência de um ente de forma tão clara como a poesia.
E, se a poesia é esse exercício de passar para lá do que é óbvio e palpável, e chegar como que ao mundo das ideias, então ela é despida de todas as contingências do autor, mesmo quando elas aparentemente lá estão. Aquilo que supostamente a liga à mão que a escreveu, mas não é que a bengala necessária para fazer um caminho até ao fundamental.
Neste quadro, o leitor é dono e senhor de todas as suas faculdades hermenêuticas, podendo levar ao limite uma estética da receção que recria, em cada leitura, a globalidade do entendimento. Se o caminho do autor à poesia é a depuração do supérfluo, o caminho inverso, da poesia ao leitor, é de encontro de cada um com aquilo que a poesia desperta em nós, com cada uma das nossas especificidades. Ler poesia é confronto connosco mesmo, é incómodo e é choque.
Pompeu Martins, neste seu livro A Utopia do Não Ser, presenteia cada um dos seus leitores com um arrojado exercício do confronto interior com o tempo, com a criança e com a materialidade do tempo dentro de nós, com os limites do nosso ser, e com a busca do que, afinal, somos.
Ler este grupo de poemas, escritos ao longo de mais de dez anos, muitos deles redigidos em geografias do mundo muito diversas, é como fazer uma arqueologia dentro do percurso de vida de cada um. Pelo confronto com as não certezas de Pompeu Martins, somos levados às mais profundas interrogações que podemos lançar sobre nós mesmos e, para as quais, não podemos almejara ter qualquer resposta.
Se “a utopia” é “o não ser”, então, as duas marcas mais palpáveis da nossa vida, o corpo e o tempo (o corpo no tempo), só se podem entender através da sua própria negação. Só fora do tempo nos entendemos nele, tal como só fora do corpo tomamos consciência de como nos vivenciamos através dele. Este caminho que Pompeu Martins faz a nossa frente, e ao o lermos, nos obriga também a fazer, é de uma profunda inquietação.
Não é que Pompeu Martins nos apresente uma defesa de um qualquer estoicismo contemporâneo -não, nada neste texto nos quer retirar do corpo e do tempo, antes pelo contrário. Mas somos compelidos a percecionar que, sendo a materialidade a única forma de viver no mundo, ela é também a guardiã das memórias e, inevitavelmente, dos afetos e dos sentidos. Uma memória que é irremediável e que, ao mesmo tempo, é a marca da nossa vida, e a marca da nossa não vida. Somos o que fomos e somos o que não fomos.
Não há nostalgias sobre o que podíamos ter feito ou não. Não há ressentimentos, nem para com o corpo, nem para com o tempo. Há uma tomada de consciência de que ao transcendente só se acede por esse caminho.
Profundamente espiritual, esta recolha de poesias de Pompeu Martins é um exercício de autoconsciência que o poeta faz, obrigando-nos à realização de um exercício espiritual através da leitura. Há Deus, mas não há religião; Há transcendente, mas não há dogma; Há espiritualidade, mas não há crença.
Há humano, apenas e não mais que humano, na verificação da sua finitude que, afinal, é o único instrumento que tem para se transcender.
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