O Serviço Nacional de Saúde tem prognóstico reservado mas o problema não é, como erradamente se pensa, a falta de meios. Nem sequer é a falta de médicos. É, isso sim, a falta de humildade dos médicos. A fama subiu-lhes à cabeça. Não são os primeiros a quem isto acontece: não raras vezes, gente que é ovacionada, elogiada pelos fãs e gabada pela crítica convence-se de que é especial, e acredita, por isso, que tem direito a tratamento VIP. Nós, todos nós, estragámos os médicos, como se estraga uma criança com mimos. Criámos um monstro. Não o fizemos com má intenção, tal como as mães que apertam as bochechas dos seus ricos filhos só querem o melhor para eles, não querem transformá-los em primas-donas. Nós também só queríamos o melhor para os nossos médicos. Aplaudimo-los à janela porque queríamos subir-lhes o moral, mas eles levantaram a garimpa. E agora é vê-los, cheios de exigências, umas autênticas divas, tal como a criança que faz birra se o jantar não for sempre bifinho com batatas fritas. Aconteceu aos médicos o que acontece tantas vezes às rock stars: distanciaram-se do povo, esqueceram as suas origens. Só porque têm, todos os dias, centenas de pessoas à espera para os ver, na expectativa de conseguirem dar dois dedos de conversa e trazer um autógrafo (de preferência no papel timbrado das receitas), já se acham o máximo.
E de repente fazem mais exigências do que os U2. Podem dar-lhes 300 toalhas brancas e 80 garrafas do melhor vinho chileno, que não vão ficar satisfeitos. Basta ver que lhes foi proposto um extravagante aumento de 60 cêntimos por hora de trabalho e eles, mesmo assim, recusaram. Da mesma forma que rejeitam atender 47 pacientes por hora, ou trabalhar 58 horas por semana. É caso para dizer “já a formiga tem catarro”, catarro esse que felizmente será visto por um veterinário, e não por um médico, que já se viu que é gente que não é dada a trabalhar. O ministro da Saúde tem-se mostrado intransigente, e ainda bem, senão qualquer dia teríamos médicos a exigir férias. Quando ficou provado, durante a pandemia, que aguentam perfeitamente trabalhar 12 meses sem parar. É o tipo de regalia que não faz sentido manter. Para quê 15 dias no Algarve? Sujeitos a apanhar uma insolação e a ir sobrecarregar outros colegas…? Os médicos começaram por exigir melhores condições para trabalhar, e agora querem melhores condições para descansar. Nunca estão satisfeitos. Alegam que estão exaustos. Até parece que é um trabalho desgastante. Haviam de ser futebolistas para ver o que é bom para a tosse (melhor do que cloridrato de bromexina). Esses, sim, cansam-se! Porque fazem exercício a sério, não é só exercícios de reanimação. O trabalho dos médicos é do mais fácil que há. Basta ver que até um coxo como o Dr. House consegue fazê-lo. É um trabalho muito rotineiro: salva uma vida aqui, salva outra ali, detecta um tumor acolá, diagnostica um cancro, uma pasmaceira. O que é que lhes custava passar mais 250 horas a tratar doentes? Se calhar, com o sono, limpavam o sarampo a alguns, mas vendo o lado positivo sempre eram menos utentes em fila de espera.
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