No mito de Pandora, a caixa abre-se e dela saem todos os males do mundo. (Parece que só é uma caixa desde a Idade Média. Até aí, o recipiente era outro – o que, na verdade, não interessa muito para a história.) A caixa fecha-se a tempo de conseguir conter apenas a esperança, o que significa, segundo se diz, que é esse o único instrumento de que a Humanidade dispõe. Talvez eu não tenha percebido bem o mito, mas francamente não me parece bem que o novo pacote de documentos sobre transacções financeiras esquisitas com o auxílio de offshores se chame Pandora Papers. Trata-se de um conjunto de 12 milhões de ficheiros confidenciais com informações sobre empresas secretas ligadas a dezenas de actuais e antigos Chefes de Estado e de governo. Até aqui, a história bate certo com o mito. A questão é que não me parece que haja esperança de que venha a acontecer seja o que for. O dinheiro destas pessoas está a salvo de impostos. Com estas revelações, limita-se a não ficar a salvo de críticas, mas as críticas, como se sabe, não desvalorizam a moeda.
Que esperança nos resta? Que os titulares destas contas secretas estejam a chorar amargamente nos seus palácios por termos descoberto os estratagemas através dos quais os adquiriram? Ou estou a procurar mal ou não encontro essa esperança no fundo da caixa, pelo que o nome com que baptizaram os achados constitui, para mim, um pomo da discórdia. Que, a propósito, dá o nome a um mito mais instrutivo. O “pomo da discórdia” original era uma maçã. Éris, a deusa da discórdia, não foi convidada para o casamento de Peleu e de Tétis. Mesmo assim, apareceu na boda e deixou uma maçã de ouro com uma nota: “Para a mais bela da festa”. As deusas Hera, Atena e Afrodite pediram a Zeus que decidisse qual delas era a mais bela, mas Zeus entregou a missão a Páris. Para convencer Páris a dar-lhe o prémio, cada deusa prometeu-lhe um presente: Hera disse que o faria rei da Europa e da Ásia, Atena ofereceu-lhe sabedoria e habilidade, e Afrodite jurou entregar-lhe o amor da mulher mais bonita do mundo, Helena de Tróia. Páris deu a vitória a Afrodite, seduziu Helena e deu origem a uma guerra de dez anos. É uma história estranha por várias razões: não ser convidado para casamentos é uma bênção – e, no entanto, Éris fica magoada; três deusas competem por uma maçã de ouro – uma peça de decoração bastante pirosa que não fica bem em casa nenhuma; Zeus, mesmo sendo todo-poderoso, sabe que não é prudente ser jurado em concursos de beleza; Páris, em vez de escolher capacidades que lhe garantiriam várias mulheres, opta por ter apenas uma. Pessoalmente, discordo do pomo da discórdia. E dos Pandora Papers também.