O facto de a vacinação indevida estar a correr bastante bem mas, em contraponto, se verificar alguma lentidão na vacinação devida, devia fazer-nos pensar. As notícias dos casos de vacinação indevida são recebidas sem qualquer sobressalto. Ninguém se surpreende com o pequeno egoísmo, a falcatrua mesquinha, a chico-espertice. Ora, sendo a vacinação indevida previsível, deveriam ter sido tomadas cautelas. O nosso primeiro impulso seria aumentar a fiscalização ou reforçar as penas aplicáveis a quem transgride. Parece-me uma estratégia errada. Como se sabe, quanto mais difícil ou perigoso for vacinar indevidamente à socapa, mais os chicos-espertos se dedicam à infracção, e maior prazer retiram dela. O que há a fazer é pôr os chicos-espertos a definir o programa de vacinação. Tal como o FBI integra os melhores burlões na sua estrutura, também o Estado devia criar um comité de chicos-espertos para organizar todas as campanhas potencialmente vulneráveis à chico-espertice. É evidente que não conseguimos vencer os chicos-espertos – logo, vamos pô-los a mandar. Uma solução óbvia é definir logo de início que a vacinação devida consiste em dar prioridade a amigos e a familiares do responsável pela vacinação, e que vacinar idosos, profissionais de saúde e bombeiros é ilegal. “Eu que saiba que quem está na linha da frente do combate à pandemia recebe uma vacina que seja”, diria o secretário de Estado da Saúde em conferência de Imprensa. Numa semana não haveria ninguém sem vacina nos lares e nos hospitais. Os telejornais abririam com notícias sobre inúmeros casos de vacinação indevida de doentes com comorbidades, enquanto o primo de um dirigente da Santa Casa e a afilhada de um presidente regional do INEM continuavam à espera de vez. Esses episódios gerariam justa dignação, que é o contrário da indignação. Populares aos gritos desabafariam com repórteres que nunca tinham visto nada assim. “A minha mãe, que tem 85 anos e sofre de asma, já levou a segunda toma, ao passo que a amante do presidente da câmara continua à espera de um telefonema para se dirigir ao centro de saúde. Mas que País é este?”, perguntariam. “Estão a descaracterizar Portugal. É por estas e por outras que os democratas continuam a subir nas sondagens”, haviam de lamentar.
(Opinião publicada na VISÃO 1457 de 4 de fevereiro)