As obras da casa avançam e o jardim parece agora um cenário de guerra. Entulho, pilhas de tijolos, um monte de areia, outro de brita, vigas de ferro, vigotas, arames retorcidos, tubos enrolados como jiboias, uma pilha de tábuas com os espinhos de pregos ferrugentos. Assustada, a natureza retrai-se sob um véu de poeira. Rego o que fui plantando durante meses. A frescura de uma alegria breve e colorida cheira a terra húmida. O sol conspira com a empreitada e a árvore de Judas está morta. A gaura branca e a pequena cameleira cor-de-rosa dificilmente sobreviverão, Não estás farta de obras?, perguntam-me os meus amigos, quando recorrentemente as nossas conversas resvalam para escolhas de azulejos, mosaicos, cores de tinta, puxadores, torneiras, sanitários. Têm razão, gastei vários anos da minha vida à espera que terminassem as obras das casas em que fui vivendo, Não posso acreditar que te vais mudar outra vez para uma casa a precisar de obras, dizem-me incrédulos, como se estivessem perante uma masoquista ou viciada. É difícil explicar-me. Gosto que as janelas por onde espreito o mundo me mostrem os olhos dos outros que aqui estiveram, quero escutar os passos antigos que ensinaram a ranger as tábuas que piso, aproveito o balanço que mãos e anos deram à madeira das portadas. Ouso tentar devolver beleza ou vida. Com a imprevisibilidade e desprendimento de quem planta, que plantar não é planear. Colho limões do limoeiro. O fruto é um acaso repetido, caroço cuspido do passado. Repouso no contínuo do tempo. O que é novo inquieta-me.
Um coração foi talhado numa prateleira da despensa e há uma pequena santa de barro esquecida no nicho do quarto. Invento amores, razões, fés. A casa acolher-me-á tanto mais quanto lhe conhecer as entranhas e as costuras com que o seu corpo se vai fazendo, E o martírio das obras?, insistem alguns amigos.