Estou no alto de dois metros de escadote a braços com uma lâmpada fundida no candeeiro do teto da cozinha. Que já tive de repintar umas cinco vezes. Como já tive de substituir armários, gonzos desfeitos por crianças penduradas em portas, o-que-é-o-jantar-mãe, ou torneiras gotejantes. Sifões entupidos. Caixas de esgoto partidas.
O diabo uma casa. Acusa o tempo como ninguém.
E nesta, foi sempre incumbência minha fazer sair da despensa as caixas de ferramentas carregadas de x-atos, busca-polos, fresas, taxas de estofador, serras e maços. Preciosidades que me fazem cliente de lojas de ferragens.
E despachemos a coisa que os dias já estão curtos e tenho o quadro desligado.
Três metros e trinta de pé-direito, sei de cor.
E, senão quando, o chão lá em baixo é o diabo.
Ou, o diabo sou eu. Dois metros de escadote em V invertido e o chão lá em baixo. Vinte anos. Há 20 fazia isto com uma perna às costas. Um cigarro e já me estico.
E daí, é melhor não furar a greve.
O título deste relambório não é meu. Roubei-o a um amigo que tem um posto fixo na minha vida, contados que são mais de 30 anos de partilha assídua de vivências.
Este amigo vive há largos anos para ensinar a escrever as gerações abaixo, em salas de universidade a que o tempo veio acrescentar novos desafios para quem é mestre.
E lá se vai mantendo lúcido e aplicado na sua mestria, por força de ir escrevendo literatura. Não é que ele se queixe de ser empurrado pelos seus mestrandos para uma suave loucura precoce. Mas um amigo é um amigo, é parte da mobília em que atentamos quando começa a revelar lascas no verniz, marcas de copos, ou um acumular de pó. Topamos os sinais.
Estes seres gigantescos tinham um capacete branco, em jeito colonial, e em se aproximando o Natal, os condutores rodeavam-nos de presentes. Um deles, a quem a minha mãe agradecia pelo nome, “olha, olha, hoje está aqui o senhor Inácio”, era o meu momento alto
E estamos nisto. Isolados. Alguns infiltrados no encontro diário de anos com as sucessivas camadas do futuro do País, olhando, escutando, e dirigindo-se a mentes cada vez mais viradas para dentro de si, dia a dia mais alheias aos saberes acumulados que se lhes oferecem.
Danadinhos os cigarros contados. Pior, o posto da idade. Pausando, num reforço o mais lento possível, lá voltam as vidas já idas.
Tinham chegado os dias compridos quando fui levada de casa e enfiada no Mini da minha mãe, seguindo-se toda a marginal até Lisboa, cidade para mim algo malcheirosa, carregada de carros.
A gerir este mar sobre rodas, todo o interesse da cidade jazia para mim nesses polícias-sinaleiros, empinados em palanques hexagonais, que lá do alto nos apitavam para parar, acompanhando o sopro no apito estridente com o avançar de uma mão enluvada de branco, estendida em riste.
Estes seres gigantescos e empertigados tinham ainda um capacete igualmente branco, em jeito colonial, e em se aproximando o Natal, os condutores rodeavam-nos dos mais faustosos presentes. Um deles, a quem a minha mãe agradecia pelo nome, “olha, olha, hoje está aqui o senhor Inácio”, era o meu momento alto das viagens à cidade. Comandando os carros com jeitos de bailarino, mal via a minha mãe, fazia continência, esmerava a vénia que lhe dava a passagem e, vendo-me de boca aberta no banco de trás, piscava-me o olho. Deferência para com a minha mãe que veio a criar um hábito entre os meus pais. Em havendo pressa, e o volante na mão do meu pai, a minha mãe rodava a manivela do vidro, e acenando de cabeça de fora ao senhor Inácio, exibia o seu melhor sorriso. Certo e seguro, seguíamos num ápice.
Esta ida à cidade tivera o intuito conseguido de me comprar duas fardas diferentes. Uma para o verão, outra para o inverno. As semanas do colégio onde ia estrear-me eram inglesas, só cinco dias, contra os horários normais da escola nacional que aos sábados doutrinava a nossa mocidade para que fosse bem portuguesa. Sendo essa doutrina obrigatória, era razão para me darem um Mundo Novo.
Não tenho grande memória de como terei conseguido sobreviver a cinco dias por semana, das nove às quatro, a ser interpelada numa língua absolutamente desconhecida, apreendendo o que devia apreender, e cumprindo o que devia cumprir. Por vezes lembrava-me do senhor Inácio, comandando dezenas de carros com o seu bailado e apitos, e tenho memória de ter começado a gesticular e a usar expressões faciais, conseguindo fazer-me entender.
Coisa que em casa deixou a entidade paternal fascinada.
Dialogando entre eles em francês aquando sobre assunto privado, não lhes passara pela cabeça que eu já gerisse duas línguas o melhor que podia, mas que de nada me serviam ao longo dos dias passados entre anglófilos.
Certo é que procurar fazer sentido dos sons estranhos emitidos por quem me iniciava no desenho de letras, números, e leitura desses símbolos, veio revelar-se um jogo fascinante e um desafio intrigante. Muito mais desafiante do que tentar construir o que fosse com pedras de lego.
E certo dia, a bem dizer num ápice, fez-se luz.
Acabei o ano do inferno surdo e mudo feita poliglota.
Os anos que se seguiram foram menos desafiantes academicamente. Socialmente, sendo os tempos os que eram, aquilo que nos entretinha num recreio sem fim, carregado de pinheiros, arbustos densos e desníveis de terreno abruptos era ser-se “cowboys and indians”. Caso se fosse rapaz. Sendo-se rapariga, recorria-se às escondidas.
Obviamente, interessei-me pelos índios. Índios que fossem bons a trepar árvores eram mais importantes, e eu era leve, trepava como ninguém, tinha uma fisga, e dada a condição feminina, tinha cabelo comprido. O que ninguém do sexo masculino tinha. A oportunidade de vir a ser chefe dos índios era grande.
Não fora os amigos da rua à beira de casa, bem mais índios do que eu, aplacarem o ego impante com que regressava da escola, senhora absoluta de várias línguas, incluindo a algaraviada da língua apache inventada, estaria agora a candidatar-me à Presidência da República Portuguesa.
Mas não houve coisa alguma que os demovesse de me fazer passar as passinhas do Algarve por cada assomo de posso, quero e mando. Lá índia, vá que ainda fosse.
Chefe, esquecesse.
Ainda esbocei tentativas de os condoer. Frouxas, reconheço. Faltava-me aquilo a que o meu pai chamava lata e que à minha mãe sobrava.
Ter lata parecia-me implicar algum desdém pelo próximo e, mal ou bem, habitava-me o peito um coração mole.
E deste posto raso concedido pela idade, observo agora a lata descomunal, o desdém, a fúria, o ódio e o coração atarracado dos inquilinos do Instituto Superior, a dois passos de casa. Envoltos em capas negras, já muito ido o início do ano, prolongam praxes humilhantes sobre caloiros em calções e t-shirts, braço direito e mão estendida, a tremelicar de frio. Para cumprir o que lhes é mandado, recorrem estes aos moradores em passeio com cães, quais figurantes aí plantados, que insultam proficientemente caso não lhes seja dada a corda que pretendem.
O imbróglio é que todos irão votar, daqui a nada.
– Sacré nom d’un chien!
Sibila a minha mãe, de mãos na cabeça.
– Apprentis-dictateurs à la noix de coco!!!
Grita o meu pai, de peito feito.
– Ainda terei pontaria?
Pergunto-me eu.