Todos os domingos da minha primeira infância, enquanto ainda morava em Águas Santas, a família alargada rumava em bando à missa da Igreja da Trindade, no centro do Porto. Porquê tão longe não sei, nunca me lembrei de perguntar. Quase sem exceção íamos a pé, de seguida, à fábrica dos Gelados Neveiros, que ficava ali ao lado. A Dona Virgínia abastecia aquela tropa imensa de gelados de várias cores e feitios. Caramelo e framboesa era o que mais saía. Lembro-me de que algumas vezes, suponho agora que em domingos de verão, fomos a uma espécie de feira popular itinerante que por pouco mais de um par de anos foi montada num descampado ali para os lados do Lima 5. Talvez não fosse aí, mas na minha memória o Luna Park ficava ao lado do Lima 5. Era uma feira popular com roda gigante, carrinhos de choque, maçã caramelizada e algodão-doce, túnel do terror, essas coisas assim. Eu era muito novo, nem 10 anos teria. Mas nunca mais me esqueci dum moçambicano muito magro, de calças de fazenda cinzentas e camisa branca com bolsos no peito e manga curta, sentado numa cadeira branca de plástico: o Homem Mais Alto do Mundo. As pessoas faziam fila e pagavam por uma fotografia com tão inusitada aberração que, não sem custo, se levantava num gesto de mecânico enfado e, sem sorrir, punha a mão gigante no ombro do corretratado. Depois sentava-se outra vez, os joelhos pontiagudos quase à altura dos ombros, como que a querer furar as calças, as mãos gigantes em repouso sobre a dobra dos joelhos. O homem era de facto gigante. Lembro-me de sentir uma imediata empatia pelo malfadado destino dessa pobre alma que passava a vida nesse senta-levanta sem propósito a sorrir amarelo para o passarinho. Um dó profundo trespassou a minha alma imberbe, sei agora que até hoje. Nunca mais soube do Luna Park, acho que nunca mais voltou ao descampado do Lima 5. O circo lá terá seguido a sua campanha por outras paragens, outras fotografias, mais um sem-fim de sentas-levantas para o Homem Mais Alto do Mundo, quantos quilos de algodão-doce e maçã caramelizada. Até março de 2019, no fim dos concertos, o Chico Carvalho montava-me uma banca com uma garrafinha de água, uma caixinha de canetas de feltro finas, um monte de CD e livros e eu sentava-me a postos, as mãos não gigantes mas grandes em repouso sobre a dobra dos joelhos. O Chico dizia posso mandar vir as feras e eu dizia manda, manda, as pessoas já faziam fila por uma fotografia ou uma assinatura com tão inusitada aberração que, não sem custo, se levantava num gesto de mecânico enfado e, sorrindo, punha a mão não gigante mas grande no ombro do corretratado, horas sem fim nisto, daí o dó profundo na alma, agora entendo, o Homem Mais Alto do Mundo sou eu, aquela visão no Luna Park é mais um daqueles mistérios insondáveis que não ouso compreender em que, nalguns momentos, o passado e o futuro falam um com o outro de igual para igual.
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