Na história da ainda tão recente indústria musical, tem existido sempre um certo choque cultural entre as gerações que se sucedem e renovam. O George Harrison, talvez por torcer o nariz ao facto de a Stéphanie do Mónaco (sim, essa: a Stéphanie dedicou-se à música por um breve período nos anos 80) ter mandado comprar todos os seus discos por forma a aparecer nas tabelas dos mais vendidos, talvez por achar que o Michael Jackson tinha ido longe demais ao vender a alma à Pepsi, fez um longo descanso de uma década, saltando a colorida e exuberante década de oitenta praticamente toda, achou por bem descansar da indústria. Quando eu comecei, era a questão do Napster e da pirataria. Muitos dos artistas amargaram com o facto de a indústria se ter, até, de certa forma, aproveitado da tão democraticamente promissora era que se adivinhava, a era da internet, do streaming, do YouTube, da circulação livre e democrática dos conteúdos artísticos. Eu nasci nesse meio, se não fossem o YouTube e os mp3, eu não teria encontrado o meu lugar. Parecia simples, divulgava-se a música de forma gratuita e o retorno haveria de chegar depois, na forma de concertos e afins. Depois, vieram as ilegalidades e os esquemas manhosos. A compra de seguidores, os Bots de fazer aumentar as visualizações de forma falsa mas até certo ponto eficaz no que toca a alardear um falso sucesso que até acaba por sê-lo graças à trapaça desse empurrão. Financeiramente compensador, ética e moralmente inaceitável. Era uma coisa básica, durante anos: era coisa que não se fazia e pronto. Só que nem por isso. O YouTube foi durante anos muito rigoroso em relação a isso, eliminando canais de produtores de conteúdos que apresentassem números e resultados inverosímeis. No entanto, quantias incalculáveis foram sendo gastas nestes esquemas, toda a gente sabia. Até que o próprio YouTube resolveu empurrar para dentro da sala da indústria da música este gigantesco elefante que por lá tem andado nestes anos recentes. É o elefante de que pouco se fala. É o elefante das vendas de visualizações legais e autorizadas pelo próprio YouTube, que decidiu que, se era assim, então que fosse o próprio YouTube a encaixar essas toneladas de dinheiro. E foi assim que, sorrateiramente, a monstruosa plataforma começou a vender views. São views falsas, correspondem a números de visualizações em que nenhum ser humano assistiu a qualquer videoclip e que, ironicamente, se podem comprar investindo na legal e autorizada plataforma “TrueView”. Consiste em transformar o videoclip num anúncio, daqueles que aparecem antes de quase todos os vídeos que hoje em dia estão alojados na plataforma, e definir o perfil do utilizador a quem esse videoclip-tranformado-em-anúncio há de aparecer. Um dos parâmetros que se pode definir é o país onde o utilizador se encontra. E há países onde esses pop-ups indesejáveis são mais baratos. Então o processo é simples: diz-se ao YouTube que o anúncio que queremos que apareça é o videoclip, pomos a aparecer a pessoas que estão no Congo, e (agora, sim, o engenho e a manha) a visualização conta logo, mesmo antes de a “vítima” clicar naquela coisa ali em baixo que diz “saltar anúncio”. E essas views somam ao contador final. Perfeitamente legal e autorizado. E aí já sou eu o velho resmungão que acha que isso é ir longe demais. Muitos amigos meus desta área têm editoras e managers a fermentar as suas visualizações e eles nem sequer sonham que o método é este, o das “TrueView”. Se soubessem, nunca autorizariam. Por uma questão estética, até. Haveriam de preferir que o grosso do orçamento de uma canção fosse investido na arte e não nas visualizações falsas.
(Crónica publicada na VISÃO 1482 de 29 de julho)