Atílio encontrava-se um pouco cansado de tudo. Cansado de si, cansado da vida, cansado do café do Café Aurora, cansado do metro para o Dragão, cansado de se chamar Atílio, nome que carece sempre de duas a três repetições em todas (mas mesmo todas) as situações da vida (A-T-Í-L-I-O. Sim, é um nome português): cansado de si. Decidiu então ganhar o Euromilhões. Resolveu não apenas jogar, mas efetivamente ganhar o Euromilhões. Até então nunca tinha jogado, com medo de que lhe saísse o primeiro prémio. Mas desta vez sim, jogaria, talvez lhe resolvesse essa questão do cansaço da vida, cansaço de tudo, cansaço de si. E desta vez era impossível não ganhar. Porque Atílio tinha sonhado com a chave. Não só com a sequência numérica, mas também com a chave para a vitória. Caso se desse a quase impossibilidade estatística de não ganhar o gordo primeiro prémio do sorteio em causa, com a chave que lhe fora concedida por via do insondável milagre do sonho, usaria a chave de uma outra maneira, talvez ainda mais infalível, rumo à inevitável vitória. Este plano envolvia alugar um automóvel. O primeiro prémio não saiu. Saiu em Antuérpia, alguém que sonhou mais, sonhou melhor, com uma mais certeira e abençoada sequência numérica. Podia acontecer, e Atílio sabia disso. Já estava preparado para isso. Alugou um Lancia Y10 metalizado, cor de chapa prateada, cor de carro, digamos assim. Nem precisou de levar a sequência numérica dos seus sonhos, pois já estava, por esta altura, gravada a ferro naquela secção da mente onde ficam registadas as coisas importantes, o nome, a terra onde se nasceu, as memórias de casa do avô. Cansado de tudo, da vida, de si, Atílio agarrou-se ao leme do seu Y10, içou as velas e foi à bolina pela A1 abaixo, deixando-se ir no aparente acaso da chave do sonho. Saiu na décima terceira saída, pois 13 era o primeiro número da sua sagrada chave, e noutra estrada entrou, contou sete saídas e pela sétima saída enveredou, com a certeza de que algum pote de ouro, de alguma forma, o esperaria no fim do arco-íris do seu acaso numérico, confiante seguiu por esses rios de alcatrão com a certeza cega do viajante, rumo ao tão esperado desconhecido que pacientemente o esperaria sob a forma de necessário acaso algures sabe-se lá onde, em que país, quem, a que postigo ou campainha eletrónica se faria anunciar, com que nome, Atílio com toda a certeza que não, e o cansaço da vida, de tudo, de si, foi-se diluindo, derretendo, dissolvendo como camada de tinta fresca nas primeiras chuvas. visao@visao.pt
(Crónica publicada na VISÃO 1478 de 1 de julho)