Sempre tive uma certa inclinação para velho eremitão. Nunca me aborreceu estar sozinho. Nunca. Tenho memórias muito antigas em casa da minha avó, memórias boas, eu ali no andar de cima, na sala da lareira, horas e horas sozinho a olhar para as lombadas grossas de livros velhos, enciclopédias velhas, horas sozinho no andar de baixo, no que julgo que terá sido em tempos o consultório do meu então já há muito falecido avô, que nunca conheci, livros de lombada grossa com títulos como Simpósio isto, Simpósio aquilo, livros já na altura (1982, 1983, 1984? O meu avô morreu em 1966, sei o ano porque decoro as datas todas com base nos álbuns e sei que o meu avô morreu novo, num incêndio, no ano do Revolver dos Beatles), dizia eu, livros já na altura com anos e anos de desuso, coisas que ninguém tem coragem de deitar fora, coisas que custa deitar fora, as gerações seguintes que tratem disso. Horas e horas sozinho, nunca me aborreceu, nunca fui muito de brinquedos, lembro-me de uma vez tentar algum entretenimento com um brinquedo que para lá tinha, um autocarro, meti uns playmobils (na altura não se chamava Playmobil, chamava-se Famobil) nos lugares dos passageiros e pensei e agora, que faço com isto, lembro-me com total e absoluto detalhe de todos, todos mesmo, todos os pormenores do dito autocarro, as cores, as formas, já o ter conseguido auferir algum entretenimento da brincadeira é que não me lembro. Nunca me deu para brincar, dava-me sim para ficar a olhar para as coisas e hoje em dia é igual, não entendo sequer o porquê de as pessoas se aborrecerem de estar sozinhas, parece que ficam ansiosas, não sei, nem percebo. Sempre me inclinei para velho eremita, acho que nasci velho eremita. Para mim não há aborrecimento, se vou num transporte público é-me totalmente impossível olhar para um passageiro e evitar que se me desenrole no cérebro uma retrospetiva da pessoa em causa, por exemplo aquela senhora: nome, proveniência, vejo-a com absoluta nitidez de coisa real a ir comprar a blusa (Top? Camisa? É a parte de cima) com que está vestida, a dizer que não, que não tem cartão daquela cadeia de lojas de retalho em concreto, deseja um, sim, porque não, depois a entrar no carro, sei o carro que é, sem dúvida, vejo, sei, o ambientador de cheiro, o carro cheira ao Lancia Y10 das minhas aulas de condução, a garrafa de água com sabor a frutos silvestres no porta-luvas, a chegada a casa, a tentativa de arrancar o fio de plástico da etiqueta com os caninos, vai de faca da cozinha porque a tesoura, onde se meteu a tesoura, onde se metem as coisas, em que esconderijo, em que alçapão, em que universo paralelo se enfiam as coisas que só aparecem quando não precisamos delas e tudo isto a pobre senhora sossegada no seu lugar, na sua viagem, farta da viagem, aborrecida, com alguma ansiedade até, é porquê, não entendo, é só olhar em volta, há lombadas grossas e pessoas, coisas que falam, roupas que gritam, letreiros como nomes de estabelecimentos e informação vária, há de tudo e mais alguma coisa por tudo quanto é sítio.
(Crónica publicada na VISÃO 1462 de 11 de março)