Dois anos e aquele clichê de dizer que passou a correr, mas ao mesmo tempo foi intenso o suficiente para não me lembrar de como era antes de ser mãe. Até porque isto de ser mãe é coisa que demora a instalar-se, mesmo que o amor nos acometa como um raio no momento em que os temos nos braços. A mim acometeu-me tal e qual, mas numa névoa de hormonas e novidade. A grande moca do puerpério.
A algumas mães sei que tarda o arrebatamento, e que há todo um estranhamento de não se sentir o que é suposto no segundo suposto, apesar de ser muito comum. Enfim, mil maneiras de viver a assunção da maternidade e seus impactos. No meio de um atropelamento hormonal, de desconforto físico (pontos, mamas doridas, exaustão e pensos higiénicos XL).
Algumas mães fazem questão de despir rapidamente a sua gravidez, para voltar às calças de ganga e ao trabalho, reduzindo a amamentação ao essencial ou evitando-a, lutando por noites de sono completo, garantindo o seu tempo de autocuidado, a sua saúde mental, a vida social e a liberdade. Outras vão se despedindo do puerpério demoradamente, num longo processo de adaptação e matrescência, em que o bebé dita o ritmo dos dias e a cadência das fases, sem pressa para voltar ao mundo lá fora. E sem querer, de forma nenhuma, dizer que um caminho é mais certo do que o outro, acho que sou das que tardam, com todas as dores e delícias desse vagar, em dois anos de colo, leite e maternagem full time.
Maternar é um desporto de alta performance. Sobretudo para quem, como eu, tomou duas decisões polémicas (romantizadas por uns, insensatas para outros): amamentar em livre demanda até um de nós se cansar, e não inscrever o bebé na creche até à idade em que ele, de facto, precisa de conviver com outras crianças.
Sei na pele que amamentar é um compromisso que (além de normalmente implicar uma primeira fase de grande dificuldade) nos retira grande liberdade, mas escolhi as suas incontáveis vantagens e não me arrependo. Dois anos depois, acho que continua a fazer sentido, mesmo que só à noite, apesar dos pesares. E também sei que sou uma privilegiada por ter uma profissão que me permite ter o bebé em casa durante a semana, ao mesmo tempo que sinto o impacto dessa escolha na minha energia e capacidade de trabalho.
É o meu grande desafio quotidiano. O malabarismo entre a demanda de cuidado e atenção permanente de um bebé e as exigências profissionais que continuaram intensas. A dificuldade de conciliação, o desgaste que isso acarreta e o pouco tempo que sobra para mim e para as outras coisas (leia-se tudo o que não é maternar ou trabalhar). E, ainda assim, reitero a decisão. Até porque a pandemia veio fechar ainda mais a porta de casa, em todos os sentidos.
Nestes dois anos, aprendi que tenho muito mais força, paciência e espírito de sacrifício do que alguma vez poderiam imaginar os que me são próximos. Aprendi muitas coisas sobre a vida e sobre o amor. Mudei profundamente o eixo e as prioridades. Relativizei tudo. Aproximei-me espiritual e emocionalmente de todas as fêmeas do mundo, em toda a ancestralidade que maternar veicula e concretiza. Aproximei-me da minha mãe e agradeci/lamentei mil vezes não ter tido filhos antes, tal como reforcei/repensei mil vezes a vontade de ter mais.
Esta crónica poderia ter sido sobre ele e sobre como é perfeito. Ou para gabar o nosso amor marsupial e suas delícias. Sobre como disse “mamã” um ano antes de todas as outras palavras e sobre como chamou por mim em todas as línguas, mesmo não sabendo sequer a língua-mãe. Sobre como se enternece e emociona com mamãs e bebés nas histórias e
nos desenhos animados. E sobre como um e um são três. Mas decidi que esta crónica seria para lembrar quão lento é o processo, que vai tornando dois, aquilo que em swahili se chama de mamatoto – o binómio umbilical mamã-bebé – e que precisa de muito mais do que uma tesoura para ser quebrado.
(Crónica publicada na VISÃO 1459 de 18 de fevereiro)