Estou, como muitíssima gente, há um ano sem viajar. Releio os meus diários de viagem e tenho umas saudades imensas de Cabo Verde, onde passo 15 dias por ano a trabalhar desde há 10 anos. Somos uma equipa de três neuropediatras, uma enfermeira e uma fisioterapeuta. Trabalhamos de segunda a sexta em duas ou três ilhas e ao fim de semana aproveitamos para conhecer um novo local. Na missão de 2019 decidimos conhecer a ilha do Maio, onde uma amiga tem uma casa de praia que nos emprestou. Uma ilha linda e pouco habitada, ainda por explorar pelo turismo. A ilha onde milhares de tartarugas vêm desovar em Junho e um grupo de jovens ambientalistas cabo-verdianos passa noites e dias a impedir que a população as mate para vender nos mercados.
Estou também, como muitíssima gente, há um ano privada de muitos dos meus amigos. Esta crónica é-lhes dedicada.
II
Ilha do Maio. Fomos à procura de uma praia. Ribeira de D. João é uma pequenina aldeia no meio de montanhas avistando o mar. Andamos perdidas em ruinhas paralelas ladeadas por casas tipo colonial, pequeninas e com portadas coloridas, algumas já abandonadas. Passamos por um grupo de homens, mulheres e crianças, sentados a conversar na sombra de um alpendre.
Uma mulher dirige-se ao jipe e diz:
– Estão perdidas? Filomena ajuda. Filomena ir com vocês. – E, sem pedir, entra no jipe e senta-se ao nosso lado.
Filomena é alta, mais de um metro e setenta, seca de carnes, ombros largos, pouco peito e sem soutien, pernas altas e esguias, mãos e pés grandes. A pele é muito escura, nariz reto e fino. Adivinha-se que a comida só dá para sobreviver e que aquele corpo musculoso foi conseguido à custa de muita caminhada pela terra batida , por galgar muitas dunas, muita roupa lavada à mão, muita criança transportada às costas (bombur). Anda descalça e pisa pedras sem um ai. Tem um lenço imaculadamente branco atado à cabeça, T-shirt amarela e saia curta xadrez. Ri muito e mostra que lhe faltam os incisivos inferiores. Os outros são sãos, compridos e brancos. Vai falando numa linguagem telegráfica, mistura de português com crioulo. “Filomena fez, Filomena teve, Filomena gosta”. Tem cinquenta e cinco anos. Nasceu e morou sempre ali. Oito filhos “quatro fiminino e quatro masculino”. Só os últimos dois nasceram no hospital. Todos vivos e sãos.
Pôs os dois homens fora de casa. “Filomena fartou. Um batia, outro bebia”. Percebo agora a falta dos incisivos….
Chegamos à praia depois de transpor umas dunas altíssimas que mais parecem pequenas montanhas.
Esqueci-me de por protetor solar no corpo e começo a espalhá-lo. Filomena pede-me o frasco e com as suas mãos grandes e musculosas massaja-me toda, espalhando o creme. Que mãos! Parece uma massagista profissional.
-Em que trabalha, Filomena?
–Filomena faz di tudo. Si pricisa, Filomena faiz. Filomena trata di cabra, Filomena lava roupa, Filomena trata di casa sinhora qui vivi na holanda. Só um pouquinho di dinheiro pra comer.
-E quando não tem dinheiro, Filomena?
-Vizinha dá arroz.
-E os filhos onde estão, Filomena?
–Um macho e um fêmea vive com Filomena. O macho di vinti e fêmea di quinzi.
-Eles estudam?
–Fêmea sim, aprende más midjor1. Vai di iace2 istudar pra cidade Porto Inglês.
Tomamos banho e secamos. Filomena não quis ir para o mar mas diz:
– Filomena sabi nadar. Dia di festa ou dia di passeio Filomena gosta di nadar.
Está muito calor, abrigadas pelas dunas altas. Vestimo-nos para regressar, pois temos almoço reservado para as 13 num restaurante que pertence a uma família italiana.
Quando a deixamos à porta de casa, insiste para que entremos. Estão lá os filhos. A rapariga é linda, alta e esguia. Tem um olhar inteligente e fala bem o português. Diz-nos que quer ser médica. A casa é de uma pobreza confrangedora. O chão é de cimento esburacado. O tecto é de telha vã. Há fios elétricos pendurados e manchas castanhas nas paredes, sinais da água que por aí corre nas raras ocasiões em que chove. À entrada a “sala”, com diversas mesas cobertas por panos acetinados e coloridos, onde ela poisou caixotes também revestidos por cetins de outras cores, de forma a fazer pequenos altares onde colocou molduras com fotos das pessoas que mais gosta: irmãos, filhos, netos e amigos que estão emigrados na Holanda e nos Estados Unidos. Uma das paredes da sala está pintada de roxo e aí pendurou um enorme poster emoldurado de um lutador de restling preto, enorme e muitíssimo musculado, apenas vestido com uns minúsculos e justos calções vermelhos. A Mónica, malandra como sempre, fá-la soltar uma gargalhada desdentada ao perguntar:
-Este era o seu primeiro marido?
Na janela fechada com portadas, umas cortinas rosa fucsia. À direita, outras cortinas semelhantes mas verde alface, que servem de porta para o seu quarto sem janela, onde se vê uma cama sem lençóis. Dorme aí com a filha. Na cabeceira de madeira torneada, está pendurado um saco de plástico azul, velho e amarrotado. Na parede manchada de castanho, mais fotos e pósteres colados com fita cola já amarelada e a descolar.
Uma outra porta em frente, dá para um corredor já descoberto, que termina num pátio. Aí há duas mesas quadradas cobertas com velhas toalhas de plástico e em cima estão poisados tachos e bacias cobertos por um pano. No chão, inúmeras caixas, bidões para guardar água e mais bacias de plástico de todas as cores. Há ainda mais três quartos sem portas , que foram sendo acrescentados à casa inicial e dão para o pátio. Um serve de cozinha. Tem um balcão de cimento onde existe um fogareiro e uma panela grande de alumínio. Mais nada. Os outros dois são minúsculos e completamente ocupados por camas de casal com colchões encardidos. Mais fios elétricos pendurados como serpentinas de uma parede à outra, mais manchas castanhas em tiras do tecto ao solo de terra batida. Ratos não deve haver, porque não há que comer.
-E quando chove, Filomena?
–Quando chovi, Filomena põe lona.
-Esta casa é sua, Filomena?
–Filomena não tem casa. Esta casa era di meu pai. Agora é di Filomena e di mais dez irmãos. Irmãos deixam Filomena viver aqui porque Filomena tratou di pai e mãe até morrer. Mãe morreu cedo. Tinha peito fichado3. Pai morreu com 97 anos. – E aponta para a parede roxa da casa onde, por baixo do lutador de restling, está pendurada uma foto a preto e branco desbotada e retocada de um homem ainda jovem de camisa branca apertada no colarinho.
–Querem comer? Filomena tem banana e papaia. Comam, comam! -Dirige-se ao pátio e tira da bacia coberta por um pano um cacho de bananas minúsculas e uma papaia. Traz também uma velha faca enferrujada e um prato esbotenado. Aceitamos, claro, o contrário seria falta de respeito por uma dádiva tão valiosa nesta casa onde mora a fome.
–Amigo é família – diz-nos.
Fica de repente com lágrimas nos olhos. Abraçamo-nos a ela e ficamos uns segundos todas caladas.
Sem nada combinarmos, a nossa “tesoureira”, abre o porta de moedas comum e damos-lhe umas notas que para nós não irão fazer diferença ,mas que serão suficientes para se comer durante mais de um mês naquela casa.
Aceita naturalmente, como alguém habituado a tanto dar e dar-se aos outros.
Acompanha-nos à porta e permanece no alpendre a sorrir e acenar até o nosso “iace” desaparecer numa curva.
Cidade da Praia, 22 Março de 2019
- melhor
- Hiace (carrinha Toyota)
- “Peito fechado” – expressão usada para designar asma brônquica