Apertemos os cintos. O ano começou como um descarrilamento. Mais de dez mil novos contagiados por dia, cerca de cento e cinquenta mortos por Covid a cada vinte e quatro horas, hospitais e unidades de cuidados intensivos em lotação quase esgotada e novo confinamento geral, com campanha eleitoral e eleições presidenciais pelo meio. Ufa!
A perspetiva é de multiplicação de casos nas próximas semanas e, portanto, de manutenção do confinamento por tempo indeterminado. (Revirar de olhos.) A minha primeira reação à notícia foi de claustrofobia, mas rapidamente passei para o azedume. Estou fula com tudo isto. Sinto-me verdadeiramente chateada, não apenas com o facto de ficar sem trabalho e de todo o setor da cultura ser fortemente afetado, mas especialmente porque tenho sido muito cumpridora e, não tendo vida social há meses, esta ideia de confinar ainda mais é como passar de uma cela para a solitária
São longos meses de condicionamentos, solidão e ansiedade. As pessoas estão cansadas, mas, evidentemente, tem havido muito desrespeito pelas normas e o chico-espertismo clássico e ostensivo tem mostrado a sua força. Fecham os bares, há festas em casa. Há confinamento num concelho, vai-se passar o fim de semana a um hotel onde não há. Há recolher obrigatório às 13h, passamos a manhã apinhados no brunch. Entre muitos outros comportamentos que têm estado à vista nas redes sociais de amigos, conhecidos e figuras públicas
Claro que o Governo tem imposto regras questionáveis, claro que tem cometido erros (alguns crassos), como aliás é de esperar numa situação inédita como esta, mas, apesar de estar muito zangada com muitos deles e ser compreensiva com outros, considero que há uma boa parte de todo este descalabro que implica o compromisso individual com o bem coletivo, e isso não cabe a um governo decretar
Os especialistas fazem muitas recomendações, muitas vezes contraditórias, porque nem tudo é linear na ciência, sobretudo quando está a acontecer em tempo real, mas os consensos que existem são claros: usar máscara, higienizar as mãos, manter distância, evitar contactos desnecessários e arejar os espaços. Ora, pela minha observação quotidiana (que obviamente vale o que vale), nos espaços de trabalho que frequento, as normas cumprem-se escrupulosamente (e falo dos espaços culturais em particular), mas socialmente a intransigência com o cumprimento das recomendações é tida como exagero de quem vive na paranoia sanitária
Estou zangada, em grande medida, por sentir que não temos como aguentar mais um confinamento longo, quer individual quer coletivamente. Estar confinado deixa marcas na saúde mental, desgasta relações, potencia violências, encobre situações de desamparo e atomiza ainda mais uma sociedade já muito desmembrada. Socialmente então é insustentável. Não temos país para amparar tantas falências, tanto desemprego, tanto desespero e a miséria que virá
Infelizmente, porém, não temos outra opção e estamos como quem tem um lençol curto demais, que ora destapa o peito, ora destapa os pés, na noite mais fria das últimas décadas. Temos de confinar para salvar vidas. Para salvar, sobretudo, os mais frágeis. E não seríamos dignos se não o tentássemos
Para meu consolo, tenho gostado de ver que a campanha, apesar de tudo, acontece. Democraticamente. E ainda que um dos candidatos faça questão de baixar o nível do debate, de insultar os adversários, de debitar demagogia e de ser abertamente racista, a imensa dignidade de quem lhe faz frente para defender os valores da democracia (à esquerda ou à direita) é um sinal de esperança. Temos muita escolha e, sendo certo que a democracia é o pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros (como diria Godinho, citando Churchill), cabe-nos demonstrar o tal compromisso individual com o bem comum e tirar o robe com borboto do confinamento para ir votar em força.
(Crónica publicada na VISÃO 1455 de 21 de janeiro)