Tinha 10 anos e ia pela primeira vez viver sozinha. O outono chegara há pouco e na semana seguinte começava o ano escolar. Na terra para onde nos tínhamos mudado no verão não existia liceu e, por essa razão, eu e a minha irmã mais velha iríamos estudar para o Porto. Os raros liceus, femininos ou masculinos, localizavam-se nas cidades grandes, os colégios de freiras não tinham grande qualidade de ensino, nem aí se realizavam exames nacionais.
Ficaríamos alojadas num lar – o Instituto Sidónio Pais – destinado aos filhos dos professores primários que moravam na província. Naquele tempo eu não sabia que afinal não tinha sido Sidónio Pais a criar aquela instituição, mas sim uma professora do Ensino Primário – Amália Luazes. Esta senhora, nascida no Porto em 1865, foi viver para Lisboa onde terminou a sua carreira como professora da escola Normal. Era uma inovadora. Escreveu vários livros com o seu método de ensino, tendo alguns sido premiados dentro e fora do país. Em Alcântara, onde dava aulas a crianças, criou cursos noturnos de alfabetização para operários e empregadas domésticas, que lecionou gratuitamente. Descrevem-na como uma senhora com um aspeto muito simples, mesmo austero, pequenina, sempre vestida de preto com um casaco até aos tornozelos, um chapelinho e um guarda chuva que lhe servia de bastão. Era muito conhecida e até temida nos ministérios, que calcorreou tenazmente até conseguir os seus objectivos. Nesse tempo os professores do Ensino Primário eram muito mal pagos e a grande maioria vivia longe dos centros urbanos onde existiam liceus. Por essa razão se lembrou de formar uma instituição, inicialmente só para raparigas, que pudesse albergar e dar educação às filhas dos professores por um custo muito módico e permitindo-lhes mais tarde serem também elas professoras primárias. Em 1916, fundou em Lisboa o Instituto do Professorado Primário Oficial Português, Secção Feminina e, 10 anos depois, uma instituição semelhante destinada a rapazes. A delegação do Porto só posteriormente viria a ser formada. Inicialmente, estando o Instituto apenas sediado em Lisboa, as raparigas provinham de todo o país, razão pela qual, num tempo em que os transportes eram escassos e morosos, a maioria só ia a casa passar as férias de verão, entre o final de Julho e o início de outubro. A educação era espartana, com horários rígidos e poucas comodidades. Contudo, dada a grande proximidade causada por uma permanência muito longa no Instituto, o ambiente era também, nessa altura, familiar. No início, as raparigas não só estudavam como aprendiam e participavam nas atividades domésticas, fazendo até o seu enxoval. Com o crescimento da instituição, este espírito familiar foi desaparecendo. O projeto inicial de Amália Luazes, que via na instrução um factor de progresso e de bem-estar social, fruto do espírito republicano da época, foi adulterado com o Estado Novo: de um projeto educativo em que as alunas participavam do governo da casa, passou a mera residência onde tudo era imposto de uma forma quase militar. De 1930 a 1974 o regulamento nunca foi modificado, tornando-se obsoleto. A instituição vivia à custa das cotas que todos os professores descontavam mensalmente do seu ordenado (em 1974 a cota mensal era de seis escudos) e do pagamento mensal das alunas. Este pagamento dependia dos rendimentos dos pais. Em 1974 o mais elevado era de duzentos e oitenta escudos mensais, passando para metade dessa verba nos casos em que os pais tinham poucos rendimentos; os órfãos não pagavam. Cada delegação tinha uma diretora, subdiretora, regentes de estudo (as prefeitas/os) e vários empregados.
No Instituto Sidónio Pais eu e a minha irmã poderíamos frequentar o liceu público, ser educadas e vigiadas e pagar, por tudo isso, uma mensalidade módica. Por essa razão os meus pais decidiram colocar-nos lá, sobretudo porque a distância a que habitavam permitia que passássemos todos os finais de semana em casa.
Em 1970, altura em que fui admitida, tínhamos uma farda que era constituída por saia e casaco ou camisola azul e camisa branca. Durante as férias de verão que antecederam a minha entrada, bordei toda a roupa (inclusive lençóis e toalhas) com o número 96, número esse que, curiosamente, correspondia ao número de raparigas que estavam a viver naquela instituição.
Nos três anos anteriores tinha vivido numa aldeia onde a minha mãe era professora e estava habituada ao ar livre, a saltitar pelas casas de lavradores amigos, a ir às vindimas, às desfolhadas, a andar de bicicleta nas ruas sem automóveis, a sujar-me com a terra e a molhar-me com a chuva. Não imaginava o que me esperava.
Na rua de Santo Ildefonso paramos o carro defronte dum edifício antigo em granito, com uma placa de latão polido em que se podia ler “Instituto Sidónio Pais”. Tocamos à campainha de uma porta de madeira pintada de verde que me pareceu monumental. Seguiu-se um tempo infinito em que estreitei a mão da minha mãe com força. Tinha o coração apertado e uma náusea de ansiedade encheu-me a boca de saliva. Por fim a porta foi entreaberta e uma mulher magra, de cabelo curto, liso e grisalho, farda cinzenta, deixou-nos passar e poisar as malas a um canto.
O átrio de granito era despido, frio e mal iluminado. Inúmeras raparigas com farda azul e branca e ladeadas de malas, tornavam a circulação impossível. As mais velhas riam em grupo ou então tentavam rapidamente atravessar o átrio para pousarem a bagagem. As mais novas, como eu, agarravam-se às mães como náufragos e muitas choravam ruidosamente.
Uma menina magrinha, de olhos grandes, ar estouvado e boca sorridente, aproximou-se de mim e perguntou-me o meu nome e número. A partir daquele momento eu era a noventa e seis. Ela era a Isabel cinquenta e nove. Viríamos a ser muito amigas.
Procurei a minha mãe, que tinha visto pouco antes a falar com uma das preceptoras. Tinha desaparecido, entretanto. A minha irmã, embora só dois anos mais velha que eu, ia ficar numa outra ala, com outra preceptora e outros horários. Também não a vi mais. Senti-me perdida naquele edifício cinzento e mal iluminado. Mandaram-nos formar uma fila dupla com as mais pequenas à frente e subir para o dormitório. Era um salão enorme e frio com mais de vinte camas de ferro estreitinhas, ladeadas por uma mesa de cabeceira em metal e madeira. Nem um quadro na parede. Nem um tapete. Nem um livro, um candeeiro ou um bibelot nas mesinhas. Tudo cinzento e beije. Destinaram-me uma cama e uma prateleira num grande armário, mais dois cabides num outro , para guardar as minhas roupas. A minha prefeita, Dona Iracema, dormia num canto do dormitório, separada por uma cortinas.
– Meninas, não quero ouvir nem mais um pio! Até amanhã!
Mas os soluços das mais novinhas continuaram a ouvir-se, entrecortados de vez em quando pelo ruído de carros a passar no empedrado da rua de Santo Ildefonso. As portadas entreabertas deixavam passar a luz dos candeeiros públicos e sombras assustadoras projetavam-se na parede defronte da minha cama. Eu não chorei, mas estava muito triste e assustada e custou-me a adormecer.
No dia seguinte fomos acordadas antes das sete. Depois de vestidas com a farda, entramos em fila no refeitório, onde o pequeno almoço era servido pelas empregadas idosas, vestidas de cinzento. Terminado este e munida da minha pasta, partimos mais uma vez em fila dupla para o ciclo preparatório na escola Gomes Teixeira, secção feminina. Nas ruas éramos olhadas com estranheza pelos transeuntes. Quem seriam aquelas meninas fardadas?
No fim das aulas esperava-nos de novo a vigilante para nos conduzir em formatura para o Instituto. Depois do almoço, já trocada a bata branca da escola por uma preta que éramos obrigadas a vestir, seguia-se um curto recreio num pátio cimentado atrás do edifício, que seria repetido após o lanche e o jantar. Nas longas horas que restavam, éramos enclausuradas numa sala de estudo com filas de carteiras de madeira, encabeçadas por uma secretária onde se sentava a prefeita, dona Iracema. Eu não sabia o que era estudar; até aquela data “despachava“ os trabalhos de casa em menos de uma hora e passava o resto do tempo a brincar ou a ajudar a minha mãe. Tinha tido três anos de enorme liberdade e, de repente, via-me numa prisão. Para me levantar da cadeira tinha que pedir permissão a dona Iracema, não podia falar durante as horas de estudo, não sabia que inventar para estar quieta e calada aquele tempo todo. Claro que onde há repressão há sempre subversão e as mais velhas logo me ensinaram como sobreviver sem ser castigada. Dona Iracema era muito surda e, se falássemos sem mover os lábios, ela não se apercebia. Aprendi assim a arte dos ventríloquos, assim como muitas das meninas da minha sala. Para além disso, comecei a munir-me de livros que gostava e que sobrepunha discretamente aos cadernos escolares. Mas o problema maior era a falta de privacidade. O único lugar onde podia estar sozinha era na casa de banho. E eu, desde criança, embora sociável, sempre gostei e necessitei muito de estar sozinha. Não tinha nada de meu exceto a farda e os livros e cadernos escolares. Da mesma forma, não tinha direito a ter preferência ou opinião. Tudo me era imposto e a tudo tinha de obedecer. Tinha deixado pais, irmãos, a minha cadelinha Fly, a minha bicicleta, os meus livros, os meus amigos. Restava adaptar-me e fingi que o fazia.
Mas mesmo com todas as artimanhas era muito difícil aguentar tantas horas de imobilidade, pelo que rapidamente fui classificada de desatenta e pouco estudiosa. Foi por isso uma surpresa quando comecei a mostrar muito bons resultados escolares e, rapidamente, ganhei um estatuto dentro da instituição. No final do primeiro ano fui escolhida como uma das melhores alunas do Instituto e tive direito a ir a Lisboa receber um prémio numa cerimónia conjunta com as outras duas secções. Mal sabiam eles que, durante a noite, inspiradas por histórias que ouvimos contar às alunas mais velhas, eu e a minha melhor amiga, a Graça 30, fazíamos incursões a todos os compartimentos do Instituto, divertindo-nos a trocar a loiça já posta para o pequeno almoço, a cozinhar ovos mexidos, a espreitar a rua de Santo Ildefonso em camisa de noite, a surripiar fotografias de todas as nossas colegas, guardadas no gabinete da diretora. Descobrimos nessa altura que toda a correspondência que enviávamos e recebíamos era previamente lida pela diretora e por vezes confiscada. Fomos descobertas e castigadas ao fim de três anos porque começamos progressivamente a convidar mais colegas para nos acompanharem nas nossas excursões noturnas e claro, como previsível, a coisa acabou por tornar-se pública…. Chamaram os meus pais para lhes comunicar o delito. A minha mãe estava envergonhada e ralhou-me emocionada, dizendo que tinha uma filha delinquente. Pôs-me a chorar. O meu pai, calado, estava com um ar malandro. Chamou-me ao lado e disse-me ao ouvido:
– Não chores! Um dia ainda vais escrever uma história sobre isto!
Muitos anos mais tarde vim a reencontrar na faculdade a minha maior amiga, a “Graça 30”. Imediatamente retomamos a nossa amizade como se nunca tivéssemos estado separadas. Ela e todas as outras meninas que eu tinha conhecido no Instituto aí permaneceram até ao seu encerramento que, penso, aconteceu em 1977. Contou-me que quando tal aconteceu se sentiu perdida, sem aquela espécie de segunda família a que há tantos anos pertencia. Tiveram que procurar um local para viver no Porto e estudar na faculdade e algumas conseguiram continuar juntas.
O edifício continua de pé, na rua de Santo Ildefonso, vazio e deteriorado. Ainda hoje sinto algo estranho e indefinível quando por lá passo.
Uma das marcas que me ficou foi a angústia dos finais de tarde de domingo. Lembro-me da tristeza que sentia por ter que deixar a minha família e regressar ao fim do dia ao Instituto. Regressar a um espaço frio e descaracterizado, onde era tratada pelo número, onde não podia isolar-me, onde não respeitavam a minha singularidade. Claro que depois de lá estar me adaptava e gozava a companhia das minhas amigas. Apesar de todos os defeitos, aquela instituição não me causou nenhum trauma e permitiu-me frequentar boas escolas públicas. Permitiu-me crescer e tornar-me mais forte. Permitiu-me aprender a dar valor à família e ao espaço, rico ou pobre, por ela criado para habitar. Esse lugar onde andamos descalços, nos esparramamos no sofá com o cão aos pés, cantamos ou choramos no chuveiro, acordamos a meio da noite e ceamos na cozinha, esse lugar que não é perfeito mas é nosso e a que chamamos lar. Permitiu-me aprender que os colégios internos não são o local adequado para educar uma criança e que nunca aí colocaria as minhas filhas. Eles são uma solução de último recurso para órfãos ou situações limite em que os pais não têm a possibilidade de educar os filhos na família.
A minha filha Ana, quando era pequena, não gostava de dormir fora da sua casa. Um dia, nas férias escolares da primeira classe, a tia convidou as minhas filhas a passar o dia em sua casa para brincarem com o primo da mesma idade e em seguida dormirem em sua casa. A Clara adorou a ideia e conseguiu entusiasmar a irmã. Fui levá-las depois do almoço, munidas com uma malinha xadrez e a almofada de baixo do braço. Às oito da noite a minha irmã telefonou-me e só disse:
– Vou-te passar uma menina.
Do outro lado só ouvia os soluços da Ana.
– Queres que te vá buscar?
– Vem!
Quando saímos do carro, ela parou defronte a nossa casa, de malinha na mão e disse:
– Esta casa não é boa nem má, é perfeita. É a nossa casa!