Hoje é sábado, dia 25 de Abril. Está um dia cinzento e chuvisca lá fora, o que não me desagrada pois não vou ter que regar. Ainda não liguei rádio nem televisão. Imagino que não haja grandes comemorações, em época de pandemia. Também nunca fui de comícios nem manifestações, embora para mim esta data seja muito importante e digna de comemorar. Eu vivi um pouco do antes do 25 de Abril de 74 e, embora muito jovem, apercebi-me que muita coisa não estava bem, de muita assimetria, muita pobreza, muita injustiça.
Lembro-me particularmente bem daquela primavera de 1974. Tínhamos mudado mais uma vez de terra, desta vez para Bragança. Veiga Simão, na altura ministro da educação, foi visitar o nosso liceu. Decretaram que nesse dia não haveria aulas mas, em contrapartida, tínhamos todos que assistir à cerimónia organizada em sua honra. Vesti a minha melhor roupa, ou não fosse eu, nesse mesmo dia, acompanhada do meu grande primeiro amor. Tinha treze anos e uma cabeça alimentada a romances russos do século dezanove. Eu queria ser uma Anne Karenina e morrer por amor debaixo de um comboio.. Mas também queria ser o Levine e ajudar ativamente a mudar o mundo. Eu queria ser tudo. O rapaz por quem estava apaixonada tinha três anos mais que eu. Era alto e esguio, cabelos pretos, olhos verdes e uma boca grande e sorridente. Era um menino bem, que vestia nesse dia blazer azul marinho com botões dourados e calças claras com vinco. Fumava SG filtro, o que me impressionava deveras. Nada tinha ainda acontecido, nem viria a acontecer. Talvez por isso me lembre ainda tão claramente.
Eu tinha chegado àquela terra meses antes e tudo era novidade. O liceu estava dividido em duas partes distintas e rapazes e raparigas apenas se encontravam nos intervalos das aulas, na sala de convívio. Um dia comecei a sentir pequeninos embates na cabeça e, à minha volta, o chão foi-se cobrindo de bolinhas de papel. Um rapaz de olhos verdes sorriu-me a poucos metros. Aconteceu logo ali. Uma onda de sangue subiu-me à cara e as hormonas entraram em ebulição. A partir daquele dia, os intervalos entre as aulas apenas serviam para o procurar com os olhos e namorar à distância. Até que me foi apresentado, a seu pedido, por uma amiga comum. Fiquei encantada. Era alto, tinha uma voz rouca e cheirava a pão acabado de fazer. De resto, pouco tinha a ver comigo. Falava de automóveis, futebol e pouco mais. Mas aquela voz…
Não me lembro do Veiga Simão. Penso que nem uma vez olhamos para ele. Estava hipnotizada por aqueles olhos verdes. Eu flutuava. À tarde, nesse mesmo dia, encontramo-nos em frente da minha casa, cada um na sua bicicleta. Lembro-me que me tocou a mão e do choque eléctrico que percorreu o meu corpo de treze anos. Os nossos olhos riam e falávamos baixinho. Durou pouco o idílio. O meu pai, do outro lado do passeio, com voz autoritária mandou-me para casa.
Eu penso que estávamos em Fevereiro ou Março de 74. Naquela tarde, na avenida do Sabor, o clima era ameno e não usávamos casacos. As árvores ainda despidas, os raios de sol morno, o cheiro a fumo das lareiras acabadas de acender, a voz do Leonard Cohen provindo do quarto trancado da minha irmã mais velha, o livro de poesia aberto do meu pai, o bordado inacabado da minha mãe, a Fly enroscada aos meus pés, tudo convidava à intimidade e divagação. Eu imaginava cenários maravilhosos e altamente improváveis, enquanto à minha frente, o livro de Geografia aberto aguardava alguma atenção.
Entretanto os dias corriam normais, pontuados pelos momentos altos do meu dia: o ir i vir do liceu acompanhada por aquele rapaz bonito.
Dia 25 de Abril, acordei como de costume às sete horas e dirigi-me à cozinha para tomar o pequeno almoço. O meu pai já lá estava, com o rádio ligado, a ouvir as notícias.
– Hoje não vais à escola- disse com voz alegre. Houve uma revolução e está tudo parado. Não te preocupes, vamos para melhor!
A rádio tocava uma música nova: Grândola Vila Morena. Não fiquei preocupada. Confiava no meu pai e, se ele estava contente eu também deveria ficar. Não fazia ideia do que estava a acontecer nem do porquê de ter acontecido.
Nos meses seguintes a confusão instalou-se no liceu e foram mais os dias sem aulas que com elas. Reuniões e mais reuniões, assembleias gerais, livros e cadernos queimados no recreio.
Entretanto, o meu amor deixou de aparecer nos intervalos durante uma semana inteira. Desesperei. Dava voltas e voltas ao liceu, imaginei-o doente, quem sabe morto….Quando de novo veio ter comigo, disse-me que andava a participar nos intervalos, num rali de carrinhos miniatura….Senti-me humilhada por ter sido trocada por uma brincadeira tão infantil e deixei de lhe falar. Não conhecia eu ainda o mundo masculino e as suas idiossincrasias…Passou a seguir-me, uns metros atrás, diariamente. Mas eu, tão orgulhosa quão tímida, não consegui mais retomar o contacto que tanto prazer me dava.
Nesse verão ele deixou Bragança e nunca mais o vi. Quando regressei às aulas, tudo estava mudado. Na sala dos alunos, nos intervalos entre as aulas, sentavam-se no chão inúmeros estudantes com roupas e hábitos bizarros. Vestiam uma mistura de roupas de verão muito coloridas e casacos de inverno, diziam “maningue”, “bué” e namoravam descontraidamente. Eram os retornados das ex-colónias, muito à frente de nós, que traziam novos hábitos. De repente, os códigos tinham mudado, rapazes e raparigas coabitavam nas salas de aula, a minha irmã mais velha pertencia a uma comissão de saneamento de professores e passou a ter vergonha que o meu pai a fosse buscar de automóvel ao liceu. Na rádio ouvia-se Zeca Afonso, Sergio Godinho, José Mário Branco, Moustaki, Paco Ibanez, Léo Ferré. Queríamos construir um país novo, justo, igualitário.
Penso ter sido aí que decidi ir para Medicina. Para contribuir de alguma maneira, para ajudar os mais desfavorecidos. Aquilo que eu mais gostava era Literatura, História, Filosofia. Contudo, como se dizia na altura, “letras são tretas”. Tomei então a decisão de enveredar pelas “ciências” de maneira a poder ter uma profissão “útil”.
A minha irmã, que terminava o liceu na área de “letras”, decidiu num ano preparar-se em casa e fazer os exames de Matemática e Biologia para ingressar na faculdade de agronomia. Queria participar na reforma agrária.
Em 1976 mudei novamente de terra. Fomos viver para Vila do Conde. A minha irmã mais velha partiu para Lisboa, onde havia a única faculdade de Agronomia do País. Ficamos eu e a mais nova a terminar o liceu. Naquela terra eu vivi finalmente a plenitude da minha adolescência, amores e desamores, grandes amizades, cumplicidades para toda a vida. Em 1977, comecei a cantar num grupo de intervenção política , o “Resistência”. Todos, excepto eu, eram filiados no partido comunista. Cantamos por todo o país, transportados num furgão e dormindo em casas de “camaradas”, sedes de juntas de freguesia ou do PCP. Lembro-me de uma noite em que ficamos sem gasolina em pleno Alentejo. Íamos cantar a Almeirim e aí iríamos dormir nessa noite. Paramos a poucos quilómetros do destino, no meio dos campos e dormimos debaixo de sobreiros. De manhã acordei coberta de formigas e quando olhei para cima todos os nossos sapatos estavam pendurados na árvore. O Zé Braga, compositor e guitarrista do grupo, o meu preferido, tinha passado toda a noite acordado. Era alto e magro, muito pálido pois era noctívago, olhos azuis aguados e um cabelo preto encaracolado e longo. Tinha talvez vinte e muitos anos e ainda não trabalhava. Passava as noites a ouvir música, a tocar guitarra e a compor. Ria mostrando as gengivas e chamava-me “Teresinha” com carinho. Era um sonhador e, mais tarde, partiu para a Rússia onde fez no conservatório o curso de guitarra clássica. Por lá casou com uma russa e regressou mais tarde a Portugal. Ainda o vi uma vez, mas perdi-lhe o rasto, como a todos os outros. O Bouças, flautista, cordas e cantor, trabalhava no sindicato dos pescadores e era o mais ativo politicamente. Era sério, de estatura média, feições finas e regulares e cabelo encaracolado. Tentava, com pouco sucesso, por ordem naquele grupo de gente tão heterogénea. Era ele que decidia o reportório e agendava os concertos. O Serafim era mais velho e tocava acordeão. Era casado e trabalhava numa secretaria pública. Era baixinho e tinha barbas compridas o que lhe dava um ar paternal e de duende da floresta. O Zé Manel tocava bombo. Por fim o Noé, estudante de engenharia, percussionista. Era alto e magro, moreno e com barbas e óculos . Era simpático e brincalhão. Mais tarde veio o Gavina, que passou a acompanhar na guitarra o Zé Braga e também tocava baixo. Fomos cantar à festa do Avante, no palco número um. Lembro-me de nos encontrarmos nos bastidores com os Trovante, do Luís Represas ainda tão novo e tão bonito… Os nossos ensaios eram na Póvoa do Varzim, na casa de um comunista que nos cedia o sótão. Era um personagem dos livros de Dickens: um homem anão, bibliotecário, que vivia sozinho numa casa enorme. Era muito culto e tinha um longo passado de clandestinidade política o que o fazia muito respeitado entre os comunistas. Na altura ninguém tinha automóvel e íamos de Vila do Conde à Póvoa, pelas Caxinas, a pé, durante a noite. Quando voltávamos, às vezes pela noite dentro, o Zé Braga e o Bouças, de guitarras penduradas tocavam e eu acompanhava-os cantando, tendo como ruído de fundo o mar, ali ao lado, embatendo nas rochas.
Durante muito tempo não suportei o cheiro de sardinhas assadas e caldo verde, que era uma constante das festas comunistas onde cantávamos. Também cansei dos discursos de abertura que começavam invariavelmente com a frase “ Camaradas operários, camponeses, soldados e marinheiros….”.
O meu maior embaraço ocorria sempre no fim dos concertos . Todos cantavam o “Avante” com o punho fechado bem erguido. Por coerência, eu que não era comunista, permanecia calada e de braços ao lado do corpo. No início de 1978 fomos convidados para fazer uma digressão na Checoslováquia, juntamente com um rancho folclórico de Viana do Castelo. Tirei o meu primeiro passaporte e fiz a primeira viagem de avião da minha vida. Os do rancho eram todos camponeses e tinham diversas idades, desde adolescentes até velhos. A noiva do rancho minhoto era dada a crises de histerismo e à última da hora era habitual recusar-se a atuar nos espetáculos. Normalmente a coisa compunha-se quando o “Manager” deles tinha com ela uma conversa. Mas uma vez, nem assim a convenceu a cantar e lá fui eu “mascarada “ de noiva minhota, gritar aquelas canções e ataviada com oiros, xailes e lenço à cabeça. Um dos problemas dos camponeses era a comida. Não gostavam de praticamente nada daquilo que nos serviam e queixavam-se ostensivamente. À mesa, durante os jantares de cerimónia que tínhamos diariamente em cada terra onde cantávamos, eles aborreciam-se de morte. Lembro-me por exemplo de um dos velhos sacar do canivete do bolso , abri-lo calmamente e, com a ponta, limpar uma a uma as unhas enegrecidas. Visitamos escolas, fábricas, infantários e tudo nos era descrito como perfeito. Contudo, um dia, a tradutora cansou de tanta mentira e decidiu contar-nos a verdade de tudo aquilo. Apenas 30% da população era comunista e o regime era imposto à força a todos os outros. Nas janelas dos prédios de Praga, jornais cobriam as janelas à laia de cortinas.
No ano seguinte comecei o curso de medicina e tive que trocar os “Resistência” pelo coro da faculdade. Seguiram-se seis anos de curso e trinta e cinco anos a trabalhar em exclusividade no Sistema Nacional de Saúde.
Como Pediatra, tive o privilégio de participar durante a minha carreira, numa verdadeira revolução na saúde dos portugueses. A taxa de mortalidade infantil baixou de 38.9 por mil nados vivos (em 1979) para 2.7 por mil (abaixo da média europeia). Deixei de ver nas enfermarias as crianças internadas por desnutrição grave. As mortes frequentes por desidratação provocadas por gastroenterites. As complicações irreversíveis das meningites bacterianas. As difterias. Os tétanos. As poliomielites. As febres reumáticas. Durante o curso de medicina as crianças só eram admitidas nas enfermarias de Pediatria até aos 7 anos de idade. A partir dessa idade eram internadas com os adultos. Ainda durante o meu internato, foi permitido a um dos pais permanecer no internamento com a criança e a idade das crianças admitidas foi sendo progressivamente aumentada para dez, depois 14 e finalmente 18 anos. Vi também desaparecer o trabalho infantil e alargar-se a escolaridade obrigatória para 12 anos. Todas estas conquistas foram fruto de muita gente que acreditou na mudança e lutou arduamente para a fazer acontecer. Para quem hoje não sabe o que foi a revolução de Abril, para quem nunca viu os seus companheiros de escola sem sapatos, rotos e desnutridos, nada do que eu conto parece real. Mas era assim. Em 1930, 70% dos portugueses eram analfabetos. Eusébio Tamagnini, ministro da Educação nessa altura, numa entrevista dada ao jornal “Diário de Notícias”, publicada em 1934, explicava como se iria extinguir o analfabetismo. Para ser resolvido, afirmou que o problema teria de ser simplificado, de acordo com as modernas descobertas pedagógicas, dividindo a população portuguesa em cinco grupos, a saber: 1.º Ineducáveis, que correspondia a 8%; 2.º Normais estúpidos – 15%; 3.º Inteligência média – 60%; 4.º Inteligência Superior – 15%; 5.º Notáveis – 2%…… Mas mesmo os de “Inteligência média”, “superior” e “notáveis”, os que sabiam ler, não podiam ler todos os livros, só aqueles que o Estado não censurava. Hoje damos como adquiridos toda a liberdade e direitos cívicos que temos. Mas não é bem assim. Temos que continuar a cuidar carinhosamente da nossa democracia para ela não esmorecer e perder a vivacidade. Na vida, temos que ser ambiciosos, lutar e trabalhar por muito para, na melhor das hipóteses, obtermos a metade do que desejamos. E temos, sobretudo, que continuar a acreditar que podemos mudar o mundo.
Perdi o rasto aos elementos do “Resistência”. Recordo-os com muito carinho. Eu era a mais novinha e a única rapariga. Trataram-me sempre com imenso cuidado e respeito e não me lembro de uma só vez em que proferissem à minha frente uma palavra ou comentário grosseiro.
Olhando agora para trás, custa-me a acreditar que já passaram 47 anos. Penso muitas vezes como foram incríveis aqueles anos em que acreditávamos poder mudar o mundo. E mudamos. Não tanto como pretendíamos, mas mudamos muitas coisas.
Nunca mais soube daquela minha primeira paixão. Para mim, estará sempre associada à revolução de Abril, aos cravos, às canções do Zeca Afonso, aos sonhos de um país e de uma menina de treze anos que queriam ter e ser tudo.