Eu tenho um paladar infantil e, no que toca aos prazeres da vida, não sou muito portuguesa. Não gosto de café. Não gosto de vinho. Não gosto de cerveja. A santíssima trindade de qualquer tuga que se preze.
Do que eu gosto mesmo é de gelados. Desde pequena que poucas coisas me fazem mais feliz do que um gelado. E só por gelados não me importo de esperar numa fila, em pé, no pico do verão.
É o meu charuto cubano. A minha taça de espumante. É comendo um gelado que me recompenso nas vitórias. Que me compenso pelos sacrifícios. E que celebro a vida no geral.
Um cone. Uma bola de chocolate negro e uma bola de sorvete de morango. É a perfeição. Gelado artesanal. Italiano. Servido com espátula e comido sem colher. Lambido sem deixar derreter. Porque não há coisa pior do que desperdiçar um gelado e desde miúda que desprezo secretamente as pessoas que não sabem controlar o seu gelado com eficiência.
Como não vibrar com a oportunidade de comer um gelado num jardim, numa praça, à beira-mar, ou sentada num degrauzinho ali mesmo ao lado da gelataria. A qualquer hora do dia, por qualquer razão, em qualquer altura do ano.
Costumo dizer que se fosse italiana não caberia nas portas. Os italianos entram nas gelatarias a meio da manhã para pedir um gelado, como quem bebe uma bica ao balcão. Dizem nocciole per favore e vão trabalhar, lambendo tranquilamente um gelado de avelã pela rua fora. Sortudos. Viver num país em que facilmente se pode comer gelados de qualidade é um privilégio.
E se hoje é cada vez mais fácil encontrar boas gelatarias em Portugal, sobretudo em Lisboa, até há poucos anos era uma desolação. A qualidade era fraquinha, pouca gente tinha o hábito de comer gelados durante o inverno, restando apenas os gelados de café (e mesmo esses iam acabando por falta de reposição). Tinha de se esperar por uma primavera já instalada para voltar a ter os gelados da carta e os que resistiam aos meses de inverno ficavam meio descongelados, cheios de cristais de gelo, melados…
Quando era pequena ia com os meus pais ao café Reflexo, no rés do chão do nosso prédio. Super Maxi, Perna de Pau e Epá eram os gelados da gama a que tinha direito. Um Cornetto de morango era o meu sonho de consumo. À medida que o outono avançava, as caixas de cartão da arca do Reflexo iam esgotando. Uma tristeza. No verão também comia os gelados caseiros da minha tia Cristina e esperava ansiosamente por essa oportunidade. Às vezes, um gelado de cone (mas nos anos 80 era raro). Lembro-me até hoje de uma bola de After Eight que comi numas férias perto de Tavira. Uma revelação.
Triste era também quando descontinuavam os gelados da Olá, como aconteceu com o Super Maxi de banana que era um dos meus favoritos. Ou, muito pior, quando fiquei severamente intolerante à lactose e tive de reduzir o meu consumo de gelados a sorvetes. É que se fazer um gelado cremoso com leite é relativamente fácil, conseguir sorvetes com a consistência suave e aveludada de um gelado é só para boas gelatarias, como a Sorbettino no Chiado (a minha favorita) e outras que respeitam a sabedoria dos gelateiros italianos. Abençoados.
Tenho muitas memórias e histórias de infância relacionadas com gelados. A inveja de quem era operado às amígdalas e tinha de comer gelados por ordem médica. Resolvida daquela vez em que “herdei” os gelados que o meu primo recém-operado se recusava a comer. Ou a minha mais forte recordação de injustiça. Quando em Mursa, num passeio de família, a minha irmã muito pequena, ao ver-me a comer um Perna de Pau, reivindica o seu. Os meus pais dizem-lhe que vá pedir um ao balcão. Mas quando regressa à esplanada, trazia antes um gelado enorme, que nitidamente não conseguia dominar. Era um Super Cornetto!!! Os meus pais estalaram numa gargalhada e eu tive de gerir a fúria de ver a pirralha lamber um inacessível e exagerado SUPER CORNETTO, enquanto eu me contentava com o meu humilde e quotidiano gelado de pauzinho…
(Crónica publicada na VISÃO 1381 de 22 de agosto)