Na semana em que a restaurada catedral de Notre Dame abriu portas em Paris, a célebre Academia de Amadores de Música foi despejada em Lisboa. Venha daí mais um hotel. A casa onde nasceu Almeida Garrett, no Porto, espera o mesmo destino. É curioso que a direita revanchista tanto acuse os imigrantes pobres de vir ameaçar a nossa “identidade histórica”, quando são os portugueses quem se está nas tintas para ela.
Cerca de trezentos alunos, dos seis aos setenta e quatro anos, estão em risco de ficar sem aulas com o fecho iminente da instituição de utilidade pública fundada há 140 anos. Na passada quinta-feira, professores e estudantes cantaram em protesto na escadaria da Assembleia da República. “Acordai, homens que dormis”. Será possível que nenhum nacionalista militante, nenhum paladino da identidade nacional se tenha juntado ao coro? Se têm amor à nossa cultura, supõe-se que conheçam Lopes-Graça.
Infelizmente, não faltam exemplos de decisões políticas atentatórias contra a História e a cultura nacionais. A transformação das cidades em meros locais de consumo resulta de uma visão política em vigor, que vive bem com a expulsão dos habitantes dos centros, com a morte do comércio local, com o despejo das associações, e promove a venda por tuta e meia dos espaços comuns e cidadãos. Turismo e plástico. Ironicamente, a indignação da direita troglodita só recai sobre o paquistanês da loja, o brasileiro da Glovo, o angolano do Uber, o filipino das obras. A “escumalha”, consoante se lê nos comentários.
Em plena crise da habitação, com a descaracterização de Lisboa e do Porto em curso, o Governo anunciou, por exemplo, a venda de dezanove imóveis do Estado – ou seja, meus, seus, nossos – a privados. O maior tem dezassete mil metros quadrados, na lisboeta Avenida 24 de Julho. Numa Europa onde a habitação pública é arma contra a especulação (o parque público português está nos 2%, comparando com, por exemplo, os liberais Países Baixos nos 30% ou Viena nos 40%), o Governo vende o pouco que ainda temos, do qual precisamos. Ninguém pestanejou.
A fórmula é, portanto, simples. Se desconhece e despreza a História e a cultura portuguesas, se vê na crise da habitação o simples mercado a funcionar, se não se indigna com a usurpação dos espaços comuns para lucro privado, mas não suporta ver abrir mais uma “loja do indiano”, está feita a prova do algodão: isso não é orgulho, é racismo.
Fun fact: também este dezembro, a Câmara Municipal de Paris homenageou Agustina Bessa-Luís, atribuindo o seu nome a uma biblioteca na Cidade Luz. Fica a cinco quilómetros da Notre Dame. Adoraria saber o que pensam da obra daquela que é para muitos a maior escritora portuguesa os chihuahuas de guarda da cultura nacional. Há de ser cá um orgulho.
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