No café da esquina, um conviva indigna-se. Muitos cafés têm uma personagem assim: alguém cujo amor às imperiais não tolda um domínio rigoroso da dita atualidade. Geralmente de pé, por vezes de colete refletor, traduz em miúdos os rodapés, com a segurança de um catedrático. E sabe o que diz! Se lhe derem um mapa, distingue o Kremlin da Casa Branca e as Maldivas da Malvinas. Os “amaricanos” não o enganam. Mas continuam a surpreendê-lo.
Esta semana, tocou-nos a todos. Não falo bem de surpresa – estou há dois anos a profetizar que Trump ganharia as eleições -, mas de estupefação. Como pode um arauto da mentira, do ódio e da violência, o Heavyweight Champion das provas dadas, conquistar milhões de votos entre quem mais será esmagado pelo seu mandato? Não tem lógica. Como pode um misógino subir no voto feminino? Como pode um racista conquistar voto latino? Como pode um neoliberal radical ganhar no voto trabalhador? Perguntamos nós e o amigo ao balcão, que, entretanto, já pediu dois favaítos para levar.
Um ponto parece ser claro: economia. Trump cavalgou a sensação maioritária de que a economia americana está em baixo – o que não corresponde à verdade, mas ecoa na memória fustigada pela inflação. Lembra-se? Há dois anos, os pobres e a classe média foram, uma vez mais, chamados a pagar a crise. Assim foi. E os lucros dos bancos estão ótimos, graças a Deus. Só ainda ninguém se esqueceu. Foi muito duro.
A campanha democrata desconsiderou esse pequeno detalhe, como tem sido apanágio: a vida económica das pessoas. O dia-a-dia. O pocket money. As groceries. O sonho americano dos pequeninos. O peru no Dia da Ação de Graças e as abóboras no Halloween. Presos a conceitos académicos para leitores da The New Yorker, afastaram o voto popular. Para quem se sente defraudado, “salvar a democracia” é uma abstração. A aposta num discurso identitário de grupos, enraizado no género ou na etnia, esqueceu a identidade mãe: a classe social. Trump não. E as trabalhadoras mulheres, os trabalhadores negros e os trabalhadores latinos uniram-se em torno daquilo que têm em comum: a carteira. Decerto almejam mais direitos para as pessoas do seu género ou etnia, mas antes querem dinheiro no bolso. Trump e Vance responderam, mentindo, mas convencendo.
A direita radical chegou ao mainstream. Como disse um primeiro-ministro português, “habituem-se”. A chamada agenda progressista – em boa parte a esquerda, no contexto europeu – está a perder contacto com a sua razão de ser: o povo. Deixou de falar essa língua. E perder o contacto com o povo é perder contacto com a realidade. As justificações apontadas à esquerda para a vitória de Trump roçam o negacionismo: os eleitores são todos incultos, racistas e misóginos. A Kamala perdeu porque é mulher, porque é negra. Tudo isto são fatores – é evidente -, mas à vigésima derrota começa a ser estranho insistir na lengalenga. Começa a ser awkward. A culpa não pode ser só da indecência dos outros.
Autocrítica, reflexão, estratégia. Precisamos de tudo. Será que a working class se tem sentido defendida por quem brada a democracia e os direitos humanos? Será que as figuras autointituladas progressistas, os ativistas e protagonistas dos movimentos de esquerda, gostam do povo? Será que aguentam as piadas toscas – e provavelmente machistas, racistas e homofóbicas – de quem não teve oportunidade de ser melhor? Será que se entendem com os trabalhadores?
Enquanto não se entenderem, não vale a pena continuarmos a apanhar surpresas.
Nota: o título é uma referência à frase de campanha de Kamala Harris – “We are not going back” (Não vamos andar para trás). Como se vê, vamos sim.
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