A demissão do primeiro-ministro António Costa com base num parágrafo críptico de uma nota à comunicação social – que é importante esclarecer – tem suscitado algum foguetório nas redes sociais. Só alguém muito a leste da realidade pode encontrar motivos para celebrar esta crise política.
As últimas 24 horas trouxeram às redes sociais uma avalanche de publicações, comentários e memes sobre a demissão de António Costa. Já começa a ser hábito, vira o disco e toca o mesmo: aqueles que, momentos antes, embandeiravam a razão e a moralidade no thread da geopolítica, poisam o monóculo e logo vestem a toga para comentar, com a mesma razão e a mesma moralidade inabaláveis, um tema sobre o qual também não leram nada. O feed é um oceano de certezas absolutas.
Faça este teste: se alguém lhe falar apaixonadamente em corrupção, “isto anda tudo a gamar” e as eloquências do costume, pergunte-lhe o que aconteceu. Pergunte-lhe uma coisa tão básica como: o que está em causa nesta investigação? É provável que a pessoa não faça ideia. Até porque não é simples.
Há duas razões fundamentais. Primeiro, não é simples porque os elementos do caso, em si, não são simples – o lítio, o hidrogénio, o data center. Investigá-los e clarificá-los decorrerá do trabalho normal da Justiça. Segundo, porque o primeiro-ministro se demitiu com base num parágrafo opaco num comunicado. Aqui, o esclarecimento deve ser célere.
Diz assim o parágrafo: “No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos”. Urge conhecer o significado, a solidez e a matéria de sustentação desta frase. A partir do momento em que António Costa é envolvido nesta investigação criminal, as consequências para o país são demasiado sérias para o assunto ficar a pairar numa nuvem. Precisamos de factos.
Independentemente daquilo que o Presidente da República decidir, está instalado um clima de suspeita e crispação que é impreterível dissipar com factos. Só ganha com este nevoeiro a fação do extremismo. Quem perde é a Democracia. Aqueles que, por não gostarem de António Costa, pensam ter aqui uma boa notícia estão desligados da realidade. A demissão de um primeiro-ministro sob a poeira do ninguém-sabe-bem-o-quê é péssima notícia para toda a gente. É a interrupção abrupta de um caminho político que ainda há dois dias era estável e é, acima de tudo, mais uma machadada nas instituições. É uma péssima notícia até para quem, iludido pela banha da cobra, decida seguir os oportunistas de serviço nas eleições. É mau para todos.
No momento em que escrevo este texto, ainda não se conhece o futuro político imediato do país. Existe, isso sim, a certeza de que não há nada para celebrar aqui – por muito que haja quem pareça confundir a demissão de um primeiro-ministro com a substituição de um treinador de futebol. Seria importante que os responsáveis partidários o percebessem: alimentar nuvens de suspeita por uns likes vai pagar-se caro com extremismo. Caberá à Justiça esclarecer o que há afinal de indícios envolvendo o primeiro-ministro. Da nossa parte, já não seria mau se lêssemos duas linhas antes de partilhar a story.
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