No passado sábado, o movimento “Vida Justa” voltou a sair à rua em Lisboa, desta vez sob o mote “somos a maioria” – assim abre o manifesto. Milhares de pessoas desfilaram reivindicando melhores salários, habitação digna, transportes e combate à inflação – urgências para a maioria das pessoas, que se agudizam com violência nos bairros ditos periféricos. Só não vê quem não quer. Tratar esta manifestação como qualquer outra, avaliando-a pelo número de participantes, é não querer compreendê-la. O sufoco daqueles que mais têm sofrido, em silêncio, com a onda interminável de crises dos últimos anos tem disseminado uma revolta que começa a fazer-se ouvir. Estes milhares são, na verdade, milhões de pessoas.
Sabe-o quem anda na rua, quem se senta nos cafés e convive fora da sua bolha: as pessoas estão exaustas. A maioria. Basta caminhar na baixa de Lisboa ou do Porto para o sentir nos olhares tensos, na impaciência no trânsito, na agressividade do trato e dos gestos. É cada vez mais comum testemunharmos situações limite nos nossos círculos, em que alguém perde a cabeça ou se comove e desaba à nossa frente. Apanhados num cenário de crises, guerras e polémicas ao minuto, onde nada parece seguro, corremos rumo a uma sociedade tensa e intolerante. Se não vemos protestos de maior dimensão, é porque o dia-a-dia contemporâneo e as redes sociais estão a isolar os cidadãos. É um fenómeno mundial. Temo, ainda assim, que o engolir desse ressentimento não tarde a explodir.
O ceticismo face à ideia de que a união faz a força tem sido acompanhado de uma individualização progressiva da experiência humana. As emoções e frustrações expressadas pelas pessoas nas redes sociais parecem ter pouca ou nenhuma expressão nas ruas porque não são efetivamente partilhadas com ninguém. O ambiente, muitas vezes tóxico, da esfera online, reflete um aterro de emoções primárias sem eco na organização política convencional: a vida associativa, cívica, partidária, cidadã. A maioria não percebe que é maioria. Neste cenário, o lema “Estamos juntos, estamos fortes / Nu sta djuntu, nu sta forti”, ouvido e repetido na manifestação de sábado, ganha uma pertinência particular.
John Donne escreveu que as pessoas não são ilhas. A sociedade hiperconsumista onde cada um sabe de si, virado para dentro, é ingerível, agressiva e necessariamente infeliz. Numa democracia, há que trabalhar para que as maiorias saibam organizar-se. Neste caso, implica lutar pela ideia de que a maioria das pessoas precisa do mesmo. Combater a divisão, a polarização, a fragmentação e a desconfiança. Sair da bolha e sair à rua, onde somos maioria.
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