Nas últimas semanas, a autoestima dos lisboetas caiu por terra. Após análise atenta dos comentários na Nomadlist, plataforma online fundada pelo sr. Pieter Levels, os portugueses acordaram em pânico perante a ideia de que os nómadas digitais estão fartos de Lisboa.
Graças à bondade dos rankings, convencemo-nos na última década de que Lisboa era um local agradável. Afinal, segundo a Nomadlist, a nossa capital é “cara”, tem “infraestruturas de má qualidade”, “ruas estreitas” e “serviços péssimos”. Mais: a gastronomia local fica “muito aquém das expectativas” e, nas palavras do próprio sr. Pieter Levels, a cidade é habitada por “comunistas anti-nómadas digitais”. O brilhantismo desta observação é, em si, reflexo de uma audácia apenas ao alcance de um grandioso empreendedor como o sr. Pieter Levels.
Não há um único cidadão português que o negue: a crise da habitação, o aumento dos preços, o esmorecimento do comércio local e a expulsão das famílias para os arrabaldes são evidentemente resultado de uma política comunista anti-nómadas digitais. Portugal é um paraíso para os seus jovens e famílias, um oásis para o pequeno comércio e um calvário para os cidadãos ricos de outros países. É ultrajante! Assim tem ditado a política salarial, fiscal e habitacional do Komintern, cujo principal alvo de discriminação são os nómadas digitais. Ora, até que enfim surge alguém com a bravura do sr. Pieter Levels para denunciar a injustiça deste modelo político velhaco, sem medo dos poderes instalados!
Em Portugal, existe um claríssimo favorecimento de quem cá nasce, estuda e trabalha. Da classe média, dos pequenos empresários, dos negócios e associações locais, dos imigrantes não-ricos; e uma política punitiva – estalinista, diria até, sr. Pieter Levels! – dos pobres nómadas digitais que para cá viajam com o generoso propósito de contribuir para o florescimento deste humilde jardim. A ingratidão não tem limites.
Sabemos bem porque é que Lisboa é hoje cara, caríssima. Os jovens portugueses têm feito de tudo para inflacionar os preços nos centros urbanos. Os sucessivos governos anti-nómadas digitais subiram de tal modo os salários no país que as famílias portuguesas se dedicam exclusivamente à especulação imobiliária. Aos 30 anos, é raro o português que ainda não comprou e remodelou dois quarteirões na Madragoa. O protecionismo fiscal do politburo permite aos empresários nacionais mudar a sede fiscal para a off-shore de Vendas Novas e fugir aos impostos. Desiluda-se, sr. Pieter Levels. Os serviços públicos portugueses têm má qualidade porque o Estado estoira o orçamento em borlas fiscais para a classe média e incentivos à natalidade. A estreiteza das ruas lisboetas é uma estratégia para impedir o sr. Pieter Levels de lá passar com a sua trotineta, veja bem! Como poderão as start-ups competir neste mercado tão adverso?
O único caminho, estimado sr. Pieter Levels, para salvar Portugal desta deriva comunista anti-nómadas digitais é continuar a dar o peito às balas no seu Twitter. Por favor, continue, para que se faça justiça de uma vez por todas.
Basta deste modelo de desenvolvimento que privilegia a fixação dos jovens que cá nascem, estudam e querem construir um futuro. Basta de hostilidade para quem se propõe salvar a economia portuguesa em troca de um mero lugar no estábulo para o unicórnio.
Espero, um dia, poder confecionar-lhe uma tosta de abacate para o compensar.
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