A ajuda alimentar aos mais carenciados e as fomes cruzaram-se em Portugal ao ritmo do clima mediterrânico e das suas vicissitudes nos últimos séculos. Quase sempre agravadas pela mão humana e pelas políticas erradas como bem advertiu Amartya Sen na sua descrição geral dos determinantes das crises alimentares e que lhe valeu o prémio Nobel da Economia. Mas se os primeiros tempos do combate à carência alimentar em Portugal foram, quase sempre, intervenções de caridade e bondade cristã, dispersas pelo país em generosas obras a quem muito temos de agradecer, atualmente, com os conhecimentos técnicos e científicos das ciências da nutrição, da epidemiologia e das ciências sociais, podemos e devemos fazer diferente e melhor. Desde meados do séc. XX sabemos melhor o impacto da carência nutricional no crescimento e desenvolvimento do feto, no desempenho cognitivo da criança e por fim na saúde geral do adulto. Sabemos hoje também, e depois dos inquéritos alimentares nacionais de 1980 e 2016, quais os nutrientes que mais fazem falta em função dos diferentes estratos sociais da população nacional. E conhecemos também, os diferentes níveis de insegurança alimentar ao longo do país, ou seja, as situações em que as famílias não têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável. A Direção-Geral da Saúde tem estudado este assunto de forma intensa desde 2011 e mais tarde, diferentes grupos de investigação da Universidade Nova e da Universidade do Porto também.
Sabendo tudo isto, e mais alguma coisa, é necessário continuar a agir. Agir com rapidez de maneira a que aqueles que realmente necessitam tenham apoio imediato. E garantindo também que esse apoio tenha qualidade. E é aqui que a discussão se pode centrar. O que se entende por um apoio de qualidade na área da assistência alimentar a pessoas carenciadas? O que deve contemplar e garantir?
Em primeiro lugar deve garantir o acesso a alimentos suficientes e que estes sejam capazes de manter quem os recebe em bom estado de saúde, no presente e no futuro. Apesar desta premissa ser simples de enunciar, ela tem sido muito difícil de cumprir. A ajuda alimentar tem sido uma oportunidade para os sistemas agrícolas e agroindustriais se desfazerem de excedentes de produção que depois são canalizados a baixo preço (ou não) para os sistemas de ajuda a pessoas carenciadas. Estes casos estão estudados e documentados e vão desde os excedentes de óleos e outras gorduras alimentares nos EUA até aos produtos e gorduras lácteas na Europa. Por outro lado, os sistemas de ajuda alimentar, quando não dependentes do Estado e centrados em organizações da sociedade civil, como é o caso dos Bancos Alimentares, canalizam em determinados momentos do ano os alimentos oferecidos pelos cidadãos para sistemas de distribuição. Esta sazonalidade na recolha e modelo de ajuda, obriga de certa forma, a que os alimentos distribuídos sejam os recebidos, alimentos geralmente processados e com boa capacidade de conservação (muitas vezes pela adição de conservantes como o sal e açúcar) e não alimentos frescos. Esta falta de qualidade nutricional no equilíbrio da oferta alimentar, aumentada pela ausência de nutricionistas e técnicos de saúde nestes sistemas, fez e faz com que as populações carenciadas recebam muitas vezes produtos altamente calóricos, com pouca densidade nutricional e com teores elevados de açúcar e sal. Perpetuando a obesidade, hipertensão e diabetes já mais prevalentes nestes grupos sociais desfavorecidos. Doença, apoio alimentar e exclusão social correm assim o risco de se autoalimentar sem que a ajuda alimentar signifique autonomia e capacidade de os fazer sair deste círculo vicioso.
Em segundo lugar, a ajuda alimentar deve também ensinar a pescar, para além de dar o peixe. Em muitos casos, a insegurança alimentar não é apenas resultado da falta de acesso aos alimentos. Ela resulta também de um acumular de desconhecimento das famílias mais desfavorecidas relativamente à economia doméstica (como escolher, comprar alimentos, armazenar) e da falta de competências para transformar os alimentos recebidos gratuitamente numa refeição saborosa e equilibrada que a família tenha prazer em consumir. Em muitos casos, os alimentos recebidos são rejeitados ou vendidos de novo porque não satisfazem os requisitos da satisfação e prazer imediato que a comida rápida, com sal, açúcar e gordura, produz no nosso cérebro. Para além de fornecer alimentos é igualmente necessário o acompanhamento por técnicos qualificados para enquadrar os alimentos nesta realidade completamente diferente da habitual intervenção comunitária. Aqui necessita-se mais do que a mera oferta alimentar, mas de um investimento sério em recursos humanos treinados para este acompanhamento.
Por fim, um investimento de qualidade na área do combate à insegurança alimentar deve contemplar a integração dos sistemas produtivos locais e da cultura alimentar local ao longo de toda a intervenção. Sendo a ajuda alimentar a populações carenciadas, na maior parte das vezes, suportada economicamente por dinheiro público, faz sentido que este financiamento tenha a capacidade de mobilizar produtores locais, os sistemas de distribuição local e, por fim modelos de consumo saudável e intergeracionais, como o padrão alimentar mediterrânico, onde a tradição alimentar, o prazer à mesa e a saúde se misturam de forma muito equilibrada.
Portugal, deu recentemente passos neste sentido com a elaboração de cabazes alimentares nutricionalmente equilibrados para pessoas mais carenciadas fornecidos pela Segurança Alimentar e que já chegam a mais de 60 000 pessoas. Neste trabalho, os Ministérios da Saúde e da Segurança Social conjuntamente com a ASAE colaboraram de forma exemplar, sendo este esforço reconhecido a nível europeu. Ou com estratégias regionais de inovação e empreendedorismo social como a que aconteceu no Algarve através do programa “O Prato Certo” apoiada pela DGS, por ONG´s, pela Universidade do Algarve, ARS e pelas autarquias algarvias. Em todas estas atividades, a caridade avulsa tipo “sopa dos pobres” e das cantinas sociais (importante e muito necessária por vezes) foi substituída pela oferta alimentar nutricionalmente adequada e pelo ensinar de competências para a autonomia e capacitação das pessoas mais carenciadas com monitorização pública e com o prestar de contas. Estes formatos de ajuda organizada são, a meu ver, os mais necessários e eficazes porque em Portugal e nos países europeus, as famílias mais carenciadas não lutam apenas contra a fome, como acontece infelizmente em algumas partes do mundo. Aqui luta-se também contra um certo tipo de caridade que oferece comida de má qualidade nutricional, reciclada e resultado de uma sociedade que compra mais do que devia e que depois deita fora o que não lhe interessa.
Este é um trabalho ainda insuficiente, mas muito certeiro para juntar o apoio alimentar de qualidade com a dignidade humana. Uma forma de fazer diferente do tradicional “pobre e mal agradecido”. Um investimento numa cultura cívica ainda muito frágil, pouco habitual na nossa sociedade e que é necessário continuar.