Na permanente tentativa de melhorar a nossa saúde e/ou de evitar a doença, somos sujeitos regularmente a recomendações de gurus da nutrição (um campo particularmente rico em mitos e crenças), no sentido de complementar a nossa dieta com suplementos. Estes podem ser multivitamínicos, proteínas, elementos raros e até hormonas.
A recomendação para tomar cálcio e vitamina D é a mais recente das modas nos meios de comunicação social.
A cena é quase sempre a mesma: num programa de grande audiência da tarde – aparentemente dirigido a uma determinada camada da população – donas de casa e reformados(as) por exemplo – um “perito” vem recomendar a ingestão de uma série variada de pílulas para “envelhecer melhor”, “parecer mais jovem”, “aumentar a energia” etc. etc.
Uma das mais recentes recomendações incide sobre a necessidade das mulheres de uma certa idade (que quase nunca é referida especificamente…) tomarem cálcio para “fortalecer os ossos” (sic). A ideia aqui é aparentemente prevenir a osteoporose e, ao fazê-lo, evitar fracturas ósseas em mulheres pós-menopáusicas. Ou seja, trata-se de uma medida preventiva.
Que as fracturas osteoporóticas são um problema de saúde pública, ninguém tem dúvidas: a nível mundial calcula-se que todos os anos 9 milhões de pessoas (a maior parte mulheres pós-menopáusicas) têm uma fractura classificada como osteoporótica. Perante esta situação, algumas instituições de saúde recomendam rastreio e tratamento preventivo. O problema é o habitual: é impossível prever quem vai ter farcturas, já que a maior parte das pessoas que têm fraturas não é osteoporótica e a maior parte das pessoas com osteoporose nunca virá a ter uma fractura.
A recomendação da ingestão de cálcio vem neste contexto. Afinal, dado que o cálcio é um dos constituintes mais importantes dos ossos, haverá que suplementar a dieta com uns comprimidos de cálcio e já não se verificarão fracturas.
Então porque é uma recomendação questionável?
Por três razões: ausência de evidência científica que consumir cálcio extra melhora a saúde óssea, dificuldade de prever quem vai ter fracturas e perfil de risco da tomada crónica de cálcio.
No primeiro caso existe evidência científica abundante do modesto (ou ausente) efeito da toma de cálcio isolado para mineralização óssea.
No segundo caso, a previsão de fracturas é difícil: para esse efeito, utilizam-se escalas com dados específicos identificados em estudos de risco de osteoporose que nos permitem o cálculo de uma probabilidade de fracturas (colo do fémur, vértebras, global). Por exemplo, quando utilizamos a escala FRAX da OMS (a mais utilizada), verificamos que uma paciente típica considerada de alto risco – mulher de 57 anos de idade, sem doenças atingindo o metabolismo ósseo, que não faz medicação com efeitos ósseos, que não fuma e que apresenta ingestão normal de álcool, apresenta um risco de fracturas osteoporóticas aos 10 anos de apenas 2,4%. Por outras palavras, num grupo de 1.000 mulheres semelhantes, apenas 24 irão ter uma fractura osteoporótica durante os 10 anos seguintes (2,4/ano e nós não sabemos quais, claro). As outras 976 não beneficiam de intervenção preventiva. É um risco de facto modesto.
As quantidades de cálcio que se devem tomar estão bem determinadas: 1.000 mg/dia para toda a gente dos 19-50 anos, 1.200 mg/dia em mulheres com mais de 50 anos e em homens com mais de 70 anos. Mas sabe-se também que não se ganha nada em tomar mais do que estas quantidades de cálcio, isto é, não se ganha nada em aumentar a sua ingestão (IOM, USA 2010).
Dito isto, caso os pacientes insistam em tomar cálcio suplementar, temos de entrar em linha de conta com os efeitos adversos desta terapêutica crónica para podermos fazer uma análise de benefício-risco, isto é, se o bem que esperamos com a ingestão do suplemento é superior ao mal que ele possa induzir.
Ora recentemente foi levantada a questão dos riscos cardiovasculares associados com a tomada crónica de cálcio. Esta questão foi identificada durante a última década, devido à publicação de duas revisões sistemáticas de ensaios clínicos comparando pacientes a fazer cálcio (com ou sem vitamina D) ou placebo, e em que se detectou nos primeiros um aumento de 25% de risco de incidência de enfarte do miocárdio (ataque cardíaco)[1]. Curiosamente, estes resultados foram mais recentemente contrariados por outras três revisões sistemáticas de alta-qualidade, que não confirmaram o aumento do risco[2]. Dado que ainda por cima o mecanismo potencial justificando os efeitos negativos do cálcio no coração são desconhecidos, a questão será de saber se este efeito é real ou não, já que milhões de pessoas tomam cálcio diariamente e mesmo um risco pequeno significaria um número apreciável de doentes atingidos.
Como é que os médicos e os doentes deverão agir, baseados nesta evidência científica contraditória?
Numa perspectiva prudente, dever-se-á evitar a suplementação com cálcio extra, privilegiando o cálcio da dieta ingerindo produtos lácteos, vegetais, etc. É sabido ainda por cima que o cálcio em suplementos aumenta o risco de nefrolitíase (“pedras” nos rins), enquanto o dietético diminui este risco!
Ainda por cima, se os pacientes se expuserem ao sol com regularidade aumentarão a sua síntese de vitamina D, o que terá um efeito positivo global.