Sabia que a água potável de sua casa é tão eficaz para limpar feridas como cloreto de sódio esterilizado (Cochrane Database of Systematic Reviews 2012, Issue 2. Art. No.: CD003861)? E que em doentes idosos deve-se ser muito menos interventivo em termos de tratamento do colesterol elevado e da hipertensão arterial, especialmente acima dos 80 anos (Evidence Based Medicina 2014;14:121-2)?
É hoje convicção generalizada que em muitas situações clínicas de todos os sistemas de saúde (públicos ou privados) existem situações que, baseados na melhor evidência científica disponível, se podem classificar como inúteis ou mesmo prejudiciais. Por outras palavras: a ciência médica não recomenda estes cuidados, quer por não apresentarem benefício clínico (serem ineficazes), quer por apresentarem um perfil de risco demasiado elevado (indutor de dano).
Um outro conceito prático paralelo é o de “medicina defensiva”, que define uma prática clínica que opta por requisitar meios auxiliares de diagnóstico não justificados, apenas para o profissional de saúde não poder vir a ser acusado mais tarde de “não ter feito tudo” pelos seus doentes. A frase “…Em medicina pode-se ser acusado por se fazer a menos, mas nunca se tem problemas se se fizer a mais.” reflecte exactamente esta realidade da prática clínica moderna.
As razões para este estado de coisas – absolutamente generalizado pelo mundo – são várias e incluem práticas clínicas cientificamente desactualizadas, excesso de oferta de tecnologias que têm de ser rentabilizadas, pressões sobre sustentabilidade financeira de unidades de saúde, assim como interesses económicos dos agentes da saúde e mesmo dos responsáveis governamentais. Uma razão raramente discutida é a convicção dos doentes/pacientes que uma prática clínica de qualidade implica elevada intensidade diagnóstica e terapêutica, ou seja, quanto mais testes diagnósticos forem pedidos e esquemas de tratamentos implementados, melhor serão os cuidados.
Recentemente, um estudo na melhor revista médica americana de serviços de saúde procurou “traduzir” para os pacientes o conceito de decisões em saúde baseadas na evidência científica e, ao mesmo tempo, inquirir das suas opiniões sobre a qualidade dos cuidados (Health Affairs 2010;29:1400–1406). Foram inquiridos 1.558 pacientes possuidores de seguro de saúde com idades compreendidas entre 18-69 anos, cujas opiniões incidiram sobre o conceito de qualidade em saúde e de padrões de prática. Estes representantes da classe média americana, com bons padrões de educação, acreditavam que todos os cuidados médicos obedecem obrigatoriamente a um standard mínimo, desconheciam os conceitos de “evidência científica em saúde” e de “Normas de Orientação Clínica” (embora neste último caso alguns ventilassem a opinião que as NOC eram apenas instrumentos de contenção de custos…), acreditavam que quanto maior a intensidade dos cuidados melhor é a prática clínica e que as técnicas e medicamentos mais recentes são sempre muito melhores que os mais antigos. Finalmente, afirmavam que os cuidados mais dispendiosos são sempre de melhor qualidade do que os menos dispendiosos.
Qual é o problema destas convicções?
O problema é que estas opiniões divergem, na sua maioria, do dos peritos médicos, que definem qualidade dos cuidados de maneira quase antagónica da afirmada por estes doentes.
Porque esta discrepância de opiniões é em si mesma uma questão grave para os SNS modernos, um conjunto de instituições académicas e universitárias americanas decidiram lançar o projecto “Choosing Wisely”®, hoje alargado a outros países.
Este é um projecto de literacia em saúde para os cidadãos, procurando informá-los sobre as opções correctas a ter num conjunto de situações quotidianas de saúde. Isto significa escolher os cuidados suportados por evidência científica de boa qualidade demonstrando benefícios em doentes semelhantes, que não duplica testes ou técnicas realizadas previamente, que não induzam efeitos adversos graves e que são de facto necessários para a situação clínica subjacente. Os dois casos do início deste texto são exemplos disso.
A ideia subjacente a este tipo de sistema de apoio á decisão (de pacientes/doentes, gestores/administradores e de profissionais de saúde) destina-se a aumentar a qualidade dos cuidados através de boa informação, corrigindo os seus três principais problemas: sobreutilização, subutilização e má utilização.
A Cochrane Portugal e o Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa irão tentar lançar uma versão original portuguesa do projecto “Choosing Wisely”® (que traduzimos para “Escolhas Criteriosas em Saúde”), para benefício de todos. Entretanto, o leitor mais interessado pode consultar os sítios já disponíveis em inglês (www.choosingwisely.org/ ou www.choosingwisely.co.uk/).