A separação entre a prática pública e privada da medicina é um tema recorrente na discussão de políticas de saúde, sobretudo quando se aborda a organização do trabalho médico. O atual programa do governo refere-se-lhe, aliás, implicitamente ao prever a “evolução progressiva para a separação dos setores através da criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas no SNS”.
A relevância do problema (e a polémica que, muitas das vezes, envolve a sua discussão) não condiz, contudo, com o pouco conhecimento que temos sobre ele.
Desde logo porque tendemos a esquecer que a acumulação de prática pública e privada da medicina é apenas uma das dimensões do pluriemprego médico, um fenómeno complexo e multifacetado, no qual também a acumulação do exercício da medicina com outras atividades económicas (comum nos países de baixa e média renda) e a acumulação do exercício da medicina com outras funções públicas (como sejam o ensino, a investigação ou a gestão) suscitam questões à gestão eficiente dos recursos humanos. E como classificar a acumulação “natural” entre emprego público e participação em programas especiais de recuperação de listas de espera?
Depois porque dispomos de pouca evidência sobre as razões que levam os profissionais de saúde a esta opção. Há poucos estudos que comprovem os motivos que levam um médico a acumular prática pública e privada. Embora os fatores monetários sejam os mais frequentemente referidos, os fatores não monetários (v.g., melhores condições de exercício, autonomia na organização do trabalho, atualização, prestígio social) também são invocados. Uma formulação particularmente interessante é a apresentada em Dual practice in the health sector: review of the evidence, de Ferrinho e colegas, que sugere que na origem da decisão estará o gap entre as expectativas profissionais e a compensação pelo serviço público. Por que razão não é o serviço público percecionado como “compensador”?
Depois ainda porque ignoramos a real dimensão desta realidade. Quantos são, afinal, os médicos que em Portugal acumulam a prática pública e privada da medicina? Sem ter, no mínimo, esta informação, como podemos aspirar a conseguir planear uma separação de exercícios?
Finalmente, porque sabemos pouco dos reais impactos da acumulação pública e privada na utilização dos escassos recursos públicos afetos ao sector da saúde. É habitual reconhecer que, apesar de a acumulação entre prática pública e privada da medicina estar associada a um conjunto de eventuais consequências negativas, ela comporta também potenciais efeitos positivos. De facto, sabemos que os comportamentos predatórios (v.g., indução da procura pela oferta, i.e., abuso da assimetria de informação que caracteriza a relação entre o médico e o consumidor de cuidados de saúde conduzindo este último a acreditar numa necessidade nem sempre real), o desvio de recursos (v.g., desnatação, i.e., seleção de doentes que permitam maximizar o rendimento da componente privada deixando para o serviço público a resposta à patologia menos lucrativa) e a competição pelo tempo (v.g., shirking da literatura anglo-saxónica, i.e., produtividade sub-óptima ou absentismo injustificado) são apenas alguns dos muitos riscos da inexistência de separação. Mas também sabemos que a retenção de profissionais a baixo salário, a diminuição de pagamentos informais, o aumento da oferta, o aumento da liberdade de escolha e o enriquecimento da experiência profissional são hipotéticos reversos da mesma medalha. Como resolver este dilema?
Os estudos disponíveis mostram que não há receitas únicas para lidar com os efeitos adversos do pluriemprego médico. Para além de não podermos esquecer que as políticas de recursos humanos dependem do tempo e do contexto, é importante reter que há soluções que sabemos que não funcionam. Ignorar o problema não vai fazê-lo desaparecer. Deixar o assunto à consideração da ética individual não regula, adequadamente, o risco para o interesse público. Tratar a questão ao nível da corrupção emergente não previne o problema. Proibir tende a estimular a prática ilegal e os pagamentos informais. Acima de tudo, apostar apenas em aumentar os salários (uma opção muito referida) parece não produzir mais do que efeitos limitados ao curto-prazo.
Que estratégia utilizar então? Como referido, uma combinação de atuações é, provavelmente, o melhor caminho. A boa regulação profissional e a valorização do ethos do serviço público são apenas duas apostas seguras.