Sempre que os “jihadistas” resolvem atuar (e não uso o termo terrorismo de propósito, porque aí não falaria só de Islão), lá vem o mundo muçulmano em massa dizer que não vale a pena “colocarem-nos a todos no mesmo pacote”, porque o islão deles não é o nosso, ou que aquilo que fazem não é sequer “islão”. O problema é que, qualquer que seja a justificação que se apresente, a lógica religioso-belicista destes grupos é baseada em leituras de versículos do alcorão que estão escritos e traduzidos e que apelam à guerra, à violência e morte aos infiéis.
É preciso admitir que não existem estudos suficientemente conhecidos sobre o pouco que se tem feito para estudar a formação e evolução da noção de guerra no Islão ou que examinem de forma crítica as variadas perspetivas islâmicas sobre esta matéria. Acresce a esta lacuna científica, uma tradição clássica islâmica que desenvolveu a sua própria visão canónica sobre a formação e evolução da guerra sagrada, havendo algumas variações entre as escolas legais, mas com uma visão mais ou menos uniforme sobre o significado e aplicação da guerra divinamente orientada. E a verdade é que os estudiosos da guerra santa na civilização islâmica têm demonstrado uma tendência para aceitar de forma acrítica, e sem desafiar, estas perspectivas já normalizadas.
Versículos bélicos
Os versículos sobre a guerra são muitos e estão espalhados por 12 capítulos no Alcorão, contudo, é preciso entender que a exegese desses versículos é complexa e ambígua por uma série de razões: 1)porque a revelação foi sendo transmitida durante 23 anos ao Profeta Muhammad e aos muçulmanos, sempre oralmente; 2)porque os registos dessas revelações estiveram em materiais de vário tipo, desde peles de animais a folhas de plantas, entre outros, e são produto de discursos de retórica e dialéctica, dentro de determinado tempo e contexto situacional; 3) porque a compilação destes manuscritos aconteceu mais de 100 anos após o desaparecimento do Profeta; 4) porque a redação do Alcorão foi ainda mais tardia e provavelmente obedecendo a critérios de seleção, organização e abrogação questionáveis; 5) porque a apresentação dos capítulos não é cronológica: as últimas revelações aparecem primeiro, e as primeiras revelações surgem no fim; 6) porque houve versículos omitidos ou integrados em capítulos onde se pensava, à época, fazerem mais sentido (e de acordo com os interesses religiosos e políticos do momento e das facções que existiam); 7) porque a linguagem poética dos árabes pré-islâmicos merece sempre uma análise cuidada pela multiplicidade de interpretações e traduções; 8) porque há necessidade de conhecer o pensamento, a organização social, política e económica dos árabes pré-islâmicos para que a exegese do alcorão seja analisada por analogia ou contradição a algo que já existia; e, finalmente, 9) porque as interpretações e traduções posteriores à redação do alcorão acabaram por permanecer numa ordem que se tornou hegemónica na versão dominante da canonização islâmica que não passou do século XII/XIII depois da morte de Averróis, quando no Islão se fecharam as portas da Ijtihad, ou o processo de análise humanista.
São inúmeros os exemplos que refletem todos estes pressupostos de complexidade. Para dar apenas um, no capítulo 16, versículos 125 a 127 diz-se:
(125)Convida (todos) para o caminho do teu Senhor com sabedoria e sermões belos, e discute com eles nas formas que sejam mais belas e mais graciosas: pois o vosso Senhor conhece bem quem se desviou do Seu caminho, e aqueles que recebem os Seus ensinamentos.(126) Se os punis, então puni-os do mesmo modo com fostes atormentados. Mas se persistirdes pacientemente, isso será melhor para o paciente.(127) Sejai pacientes. A vossa paciência existe apenas através de Deus
Estes versos, entre muitos outros, foram largamente discutidos por terem suscitado dúvidas sobre se o verso 125 estaria cronologicamente ligado aos restantes dois. Existem várias versões que indicam que esse teria sido revelado noutros contextos e noutro momento da história do Islão. Uma discussão interessante mas que não posso, por razões óbvias, prolongar neste artigo. Mas para além dessa polémica, é também curioso perceber que o verbo ‘aqaba surge três vezes nestes versículos sendo o seu significado alternar, punir ou punir de volta, no sentido de retribuição em função de algo que foi feito, ou vingança, dependendo da tradução. Nestes excertos, as palavras associadas ao verbo são “punição” e “tormento”. Se utilizarmos o verbo nestas variadas possibilidades de interpretação, o versículo poderia tomar outra forma e entendimento.
Para além das questões de cronologia e interpretação/tradução, é preciso perceber o pensamento e a organização social, económica e política na arábia pré-islâmica. Em linhas gerais, os árabes (ou nómadas) não partilhavam de um significado transcendente aplicado ao ato de guerra, nem havia algum tipo de recompensa numa vida para além desta. Os beduínos permaneciam sempre num estado de guerra, e as lutas ocorriam, salvo alguns meses do ano, e alguns locais sagrados, para afirmação da honra, para a dinâmica económica e o prestígio social. O parentesco era o que determinava a aliança entre os grupos. Contudo, quando falamos de guerra não estamos necessariamente a falar de combate. A Guerra pode ser um estado ou uma condição entre grupos humanos. A Guerra-Fria, por exemplo, não se reflete num combate direto entre as partes envolvidas. Do mesmo modo, a Jihad – que significa literalmente, ultrapassar-se a si mesmo, procurar, explorar, aguentar dores extraordinárias ou inimigas, não tem a ver originalmente com uma guerra no sentido de combate. Muito provavelmente, a Jihad aqui teria de ver com o exercício de ultrapassar um modo de pensamento e ideologia pré-islâmica para uma outra trazida por Muhammad. Porque na verdade, a palavra árabe para luta é qital, e a de guerra é gharb. E a ideia de “guerra santa” é uma invenção dos europeus.
Para se entender a Jihad no sentido FUNDACIONAL (e não FUNDAMENTALISTA, como propôs M. Arkoun) é preciso entender a transição de uma cultura de parentesco para outra baseada numa ideologia de comunidade religiosa – a Umma, e perceber que este não foi um processo simples. Não só o conceito de Deus único veio abalar todo um sistema de crenças já existente, como a própria aliança de grupo veio destruir a ideia de aliança por parentesco que até então existiu. E tão difícil e penosa foi essa transformação na sociedade árabe do século VII que encontramos inúmeros capítulos onde o conceito de Jihad é utilizado, desde contextos de não agressividade até aos de militância. E tanto mais ele é utilizado quanto maior se revela a incapacidade de os muçulmanos se defenderem dos que ameaçavam a possibilidade de existência de uma comunidade islâmica.
Esta é a razão principal, para Reuven Firestone, para que o alcorão esteja repleto de chamamentos para a guerra por parte de muçulmanos que tinham dificuldade em ultrapassar um modelo de lealdade tribal para outro, fundamentado na fraternidade religiosa. Por outras palavras, os seguidores do Profeta que se recusavam a levantar para se defender eram os que seriam incapazes de ultrapassar os tais descrentes (kafirun) ou fitna (hipócritas), que hoje são designações atribuídas aos que não seguem a interpretação radical jihadista, onde todos nós, incluindo muçulmanos que não pensem nem ajam da mesma maneira, estarão inevitavelmente incluídos, e serão, como consequência, alvos a abater. Por isso Firestone considera que ao longo do processo de revelação vamos encontrar no Alcorão capítulos que vão desde a postura não agressiva até uma outra de militância absoluta. Para este professor na Graduate School of Judaic Studies na Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion in Los Angeles, a evidência qurânica sugere que a comunidade muçulmana não tinha uma opinião homogénea em relação à luta durante o percurso da liderança de Muhammad, e que depois da sua morte, e na redação da revelação houve um agrupamento de versículos a partir de temáticas, algumas omissões e/ou substituições, e todo um processo de edição que revelou a existência de interesses de grupos distintos dentro do Islão. Tudo isto contribuiu para um tipo de exegese que acabou por tomar uma forma hegemónica que se canonizou como sendo a versão fiel da revelação, recebida ao longo de 23 anos da vida do profeta, continuando a ser oralmente transmitida durante mais de dois séculos, em períodos em que os muçulmanos estavam longe de ser alguma comunidade de interpretação homogénea, como de resto nem hoje são.
Valores éticos e morais
O que é de facto curioso é que os princípios de pluralismo e inclusão, e outros valores éticos e morais que o Alcorão também transmite, assim como a liberdade de um ser humano não ter sequer uma religião, nunca aparecem nos discursos dos radicais islâmicos. Ou aquela parte onde revela que se Deus quisesse que fossemos todos de uma só religião não teria permitido a existência de sinagogas, igrejas e mesquitas, mas que é efetivamente porque através dessa pluralidade, nos podemos conhecer melhor uns aos outros e, cada um no seu caminho, superar o outro, na via da consciência social, ou do bem comum, nada dito é referido pelos jihadistas. Nem mesmo os versículos que combatem a ignorância e empurram os muçulmanos para a procura do conhecimento, “nem que para isso tenham de ir até à China”, e outros parecidos com esse que estimularam todo um esforço para o conhecimento da filosofia greco-helénica, depois traduzida para o latim para os Europeus, da álgebra, das matemática, da caneta, da astrologia e da astronomia, que tanto serviram para os Descobrimentos, ou o humanismo dos Buyidas que acabaram por influenciar o século das Luzes na Europa; enfim, todos estes avanços civilizacionais que só foram possíveis em função de uma revelação qurânica e de uma religião chamada Islão, são referências que nunca surgem como parte de discursos dos radicais islâmicos.
Ora, é precisamente chegados a este ponto que precisamos saber definir, de uma vez por todas, que a honestidade intelectual para o estudo e a interpretação do processo de violência no alcorão só poderá ser devidamente estudado se conseguirmos separar o discurso FUNDACIONAL do discurso FUNDAMENTALISTA. Porque um pressupõe princípios éticos e morais de uma religião que representou um avanço civilizacional incontornável, e o outro está predisposto a destruir tudo o que não obedece a uma hegemonia anti-civilizacional.
O fracasso do discurso pluralista e cosmopolita, de valores e princípios éticos que os milhões de muçulmanos advogam como não sendo o dos radicais islâmicos, deve-se ao fracasso intelectual dos próprios muçulmanos. É um trabalho que não pode ser deixado a leigos mas sim aos saudosos Fuqaha (juristas formados nas Humanidades); aos pensadores e estudiosos do Islão, e aos próprios muçulmanos que há muito deixaram de se dedicar a uma honesta exegese do Alcorão. Porque está na hora de fazer a mudança positiva: a que passa da leitura sincrética e literal, para uma outra multidisciplinar e de honestidade intelectual; aquela que recupera toda a poética da beleza qurânica.