Mais de 300 mil pessoas, a grande maioria de etnia russa, vive no limbo em plena União Europeia do século XXI. Na Letónia são mais de 250 mil os não-cidadãos (ou 12% da população), na Estónia rondam os 82 mil (6%). Quando nasceram tinham passaporte soviético e, apesar de muitos terem votado pela independência em 1991, deixaram de ser reconhecidos como iguais. A identidade de um país mede-se, na Letónia, pelo domínio da língua e sem um exame, exigente, ao letão falado e escrito, não há cidadania. Sobra esse estatuto de alien ou “residente estrangeiro” no país em que sempre viveram.
Para Bruxelas, os não-cidadãos também parecem invisíveis. E o sistema, com pontos comuns a um apartheid, continua a ser tolerado doze anos depois do grande alargamento a Leste. As regras discriminatórias sobreviveram, inexplicavelmente, ao processo negocial de adesão com a Comissão Europeia e, em particular, ao dossier das liberdades, direitos e garantias, tal foi a pressa de retirar os antigos Estados soviéticos da esfera de influência de uma Rússia, na altura, mais frágil. A Organização das Nações Unidas e o Conselho da Europa já alertaram para o défice democrático. No Parlamento Europeu, este ano, foi entregue uma petição com 20 mil assinaturas para os não-cidadãos escolherem, pelo menos, os eurodeputados.
Riga e Talinn respondem que a questão das minorias é um “não-problema”, como escrevia o embaixador Seixas da Costa no seu blog. Para outros, além de uma violação grosseira dos direitos fundamentais, é também um flanco débil e desnecessário que enche de razão o vizinho russo. Um vizinho, que sob o pretexto de defesa das minorias russas, patrocinou o que é hoje, na Ucrânia, mais um conflito congelado. Moscovo está atenta. Esta semana, anunciou que vai deixar entrar, sem necessidade de visto, todos os não-cidadãos da Letónia e Estónia.
Vladimir Putin é perito a espicaçar estes vizinhos. E a reação política dos bálticos, ampliada e muito vocal, costuma colher uma atenção desproporcional de Bruxelas. São muito mediáticas, e comuns, as queixas de invasões russas ao espaço aéreo báltico, os apelos ao reforço militar da NATO no terreno – em curso –, a defesa das sanções à Rússia ou os receios de terem o mesmo destino da Crimeia. O Leste, nesta obsessão, abafa muitas vezes outras prioridades da política europeia e são um dos combustíveis da deterioração do diálogo entre Bruxelas e Moscovo para níveis que muitos comparam à Guerra Fria.
Na última semana, os nervos já sensíveis dos políticos bálticos atingiram um novo pico com a vitória de Donald Trump nas eleições nos EUA. A retórica do Presidente eleito em política externa é errática, mas até uma provável reviravolta, a NATO é hoje, para Trump, “obsoleta”. Um dos seus apoiantes próximos, Newt Gingrich, disse mesmo que tinha dúvidas em arriscar uma guerra nuclear por um país, como a Estónia, que “fica nos subúrbios de São Petersburgo”.
A certeza do acionar do artigo 5º da NATO – defesa mútua se um dos estados-membros for atacado – aumentou o volume da beligerância báltica e do resto do Leste europeu. As dúvidas quanto às diretivas da administração Trump podem servir para evitar dar mais argumentos a Putin, a começar por pôr um ponto final no ato de discriminar os não-cidadãos.