Quando António Costa pensou no desenho da coligação governamental-que-não-é-coligação-mas-é-como-se-fosse, teria certamente uma dúvida e uma certeza. A dúvida: uma aliança de um partido do centro político com duas organizações radicais teria condições para durar uma legislatura completa? A certeza: a dúvida era totalmente irrelevante, tendo em conta que a alternativa ao flirt com Bloco e PCP era a sua deposição imediata da liderança do PS. (Lembrete para os mais distraídos: Costa acabara de perder umas eleições legislativas contra Passos Coelho num cenário em que o líder do PSD carregava o peso de ser a cara de quatro anos de austeridade violenta.)
Apesar de inútil, a dúvida era fundada. O PS é europeísta, o Bloco e o PCP olham para a Europa como a cara suja do neo-colonialismo financeiro que selvaticamente esmaga o proletariado esgotado e que abundantemente engorda o capitalista encartado. O PS não admite renegociar a dívida externa, o Bloco e o PCP nunca acreditaram que pagar o que se deve é condição indispensável para se ser considerado um Estado de bem. Finalmente, o PS quer as contas públicas em ordem – e, para que isso suceda, não pode dar tudo a todos ao mesmo tempo -, o Bloco e o PCP querem distribuir e redistribuir, para voltar a distribuir e seguidamente redistribuir o que têm e o que não têm, surfando na periclitante utopia de que um dia alguém se chegará à frente para pagar a conta.
Observando os devaneios constantes da dupla Jerónimo/Catarina, não há como não recordar Margareth Tatcher quando a ex-primeira-ministra dizia, com manifesto desdém, que o socialismo só dura até se acabar o dinheiro dos outros. É preciso que se ande muito distraído para que não se perceba que os credores de Portugal têm tanto interesse em rasgar as nossas facturas como aquele que comunistas e bloquistas manifestam em pagá-las.
Apesar de tudo, a trincheira que em 2015 separava PS, Bloco e PCP não era tão potente como o combustível que os propulsionava: o ódio ao PSD e ao CDS, que António Costa soube desde então gerir com mestria, assumindo o papel de macho-alfa da relação e acorrentando Jerónimo e Catarina de uma forma que nem mesmo o velho líder do PCP, que já virou tantos frangos em política, terá antecipado. Em 2015, aquando da invenção da aliança, chegou a ser “trendy” entre os comentadores afirmar-se que um dos dois parceiros menores provocaria uma ruptura na aliança antes do final da legislatura – algures a meio de 2018 – para “afirmar a sua autonomia” perante o seu eleitorado tradicional. Passados mais de dois anos e meio, ninguém admite que isso suceda sem que o partido que o faça seja duramente penalizado nas urnas. E esse é um mérito exclusivo de António Costa, que não precisou de montar uma máquina de comunicação ao nível da de José Sócrates para conseguir esta coisa extraordinária: que os portugueses acreditem que as coisas positivas conseguidas nestes primeiros anos (finanças a recuperar, saída do procedimento por défice excessivo, crescimento da economia, decréscimo do desemprego, devolução de rendimentos, etc.) são mérito do Governo que lidera e que a responsabilidade por aquelas que falham (e são muitas) deve ser partilhada por todos os parceiros da aliança.
Com a captura do Bloco e do PCP, Costa conseguiu outra coisa notável: esvaziar o discurso político dos seus rivais à esquerda. E isso, agora que se aproxima um ano com duas eleições – europeias e legislativas – pode ser-lhes fatal. O que dirão Jerónimo e Catarina na campanha para as europeias? Que são contra a “opressão” da Europa em relação aos países com economias mais fracas? Que desprezam o aprofundamento da União? Talvez o digam, mas terão de fazer um esforço razoável para que o façam sem se rir porque o que têm feito desde Novembro de 2015 é apoiar um dos governos mais europeístas de sempre em Portugal. O mesmo acontecerá nas legislativas. O que dirá a dupla de radicais sobre a lamentável circunstância de Portugal ter hoje uma carga fiscal superior à que existia no Governo de Passos Coelho, por exemplo? (Sim, a propaganda oficial diz o contrário, mas, como diria o outro, basta fazer as contas, nomeadamente aos impostos indirectos, que aumentaram substancialmente desde 2015.) E como explicarão o facto de terem viabilizado quatro orçamentos do Estado (partindo do princípio altamente provável de que aprovarão o de 2019) que, na substância, carregam na austeridade (uma austeridade diferente, é certo, mas muito musculada)? Pois.
Claro que António Costa também tem muito para explicar. Mas se demonstrar durante as duas campanhas que aí vêm um décimo do talento de que deu provas na gestão de uma relação tão potencialmente explosiva, as suas hipóteses de continuar em São Bento são reais – sobretudo porque à captura da esquerda radical pode suceder-se, se Rio continuar a inexistir politicamente, o rapto da direita moderada.