A história conheceu-se no último domingo mas obviamente não é de hoje: dois cidadãos honrados da ilustre terra de Felgueiras decidiram unir esforços para fazer face a um problema comum: a mulher que partilhavam – ou que um dia partilharam, vá – portara-se mal. As motivações do casal (vamos chamar-lhe assim) para avançar para uma união de facto destinada a colocar a senhora no lugar eram, por isso, mais do que justas. Um não gostara de saber que era, digamos, bom, como dizer?, corno, é isso; o outro não se conformava com o facto de a ex-amante, numa atitude obviamente digna de censura, se negar a regressar à agora nostálgica volúpia das artes do adultério.
Claro que, talvez por falta de espaço, não passou pela cabeça do primeiro que o seu companheiro de armas era co-responsável pela dor no cocuruto que o atormentava nas noites sombrias. E obviamente que o segundo nunca equacionou a hipótese de a ex-amante ser dona do seu corpo e senhora da sua vontade. Percebe-se, por isso, que num dia agreste a tenha sequestrado e que, pelo caminho, tenha convidado o corno, perdão, o marido despeitado, para o festim que agendara.
Talvez a ideia inicial fosse pregar à notória devassa o raspanete que obviamente merecia. Mas como é sempre possível refinar um ralhete e os labirintos da mente são tão estranhos como um orictéropo em fuga, os dois optaram por, em vez do raspanete, pregar-lhe uma moca – literalmente, uma vez que a moca com que democraticamente a espancaram encontrava-se devidamente artilhada com uns pregos robustos.
Ainda a ressacar da orgia metálica, o casalinho foi acusado de agressão e condenado à estratosférica pena de um ano e três meses de prisão com pena suspensa. Ou seja, continuou obviamente em liberdade. Não se sabe porquê, o Ministério Público recorreu a um tribunal superior. E este, naturalmente, muniu-se das mais actuais fontes de jurisprudência para analisar o caso: a Bíblia, claro, e uma sapientíssima alínea do Código Penal de 1886. A primeira narra factos indesmentíveis: sociedades existem em que a mulher adulta é alvo de lapidação até à morte. Ou seja: a senhora devia estar calada por ter sido tratada como uma princesa. Já o segundo defende uma pena simbólica para um homem que, caçando a mulher em “acto de adultério”, a mate. Resumindo, baralhando e traduzindo: a princesa devia era pagar uma indemnização compensatória ao ex-marido “traído, vexado e humilhado”, em vez de se queixar das marcas dos pregos que seguramente lhe dão personalidade.
Esta tragédia passou-se obviamente no século passado, porque graças a Deus (a quem mais?) seria impossível ocorrer no Portugal de hoje. Felizmente as leis evoluíram no sentido de acabar com a indecência que significava a submissão incondicional das mulheres face aos homens. Não só por isso, mas também por isso, as mulheres emanciparam-se e a distinção pelo sexo é um fenómeno saudavelmente marginal. Os homens, por seu lado ganharam tino e perceberam – com dificuldades evidentes, é certo – que os tempos em que a mulher era um porta-chaves já lá vão. Finalmente, os juízes, sobretudo os de tribunais superiores, são hoje espectacularmente preparados no plano técnico e humanista, sendo, por isso, ridículo pensar que poderiam recorrer a uma obra respeitável, mas arcaica, ou a uma lei anquilosada, com mais de 100 anos, para fazer justiça a uma mulher violentamente espancada. Certo?