Quando entrei pela primeira vez numa redação, poucas coisas eram tão aterradoras como um ecrã em branco, com o cursor a piscar, à espera da inspiração que ditasse as palavras certas para contar uma história. Sou jornalista há 20 anos e, por vezes, ainda tenho a mesmo pergunta a fazer voar borboletas na minha barriga: “Serei capaz?”
Se, aos 22 anos, em vez de escrever notícias tivesse decidido dedicar-me à escrita de romances, provavelmente nunca teria publicado uma linha. Foi o facto de ter um prazo apertado no horizonte que me permitiu não esbarrar na barreira do perfecionismo. Depois do derradeiro ponto final, não volto a olhar para trás. O texto é publicado e deixa de poder ser alterado. Ainda penso que se tivesse mais umas horas poderia ter escrito assim ou assado. Mas aprendi a viver com a ideia de que, no prazo e no espaço que me foi concedido, dei o meu melhor.
Invejo os jornalistas e escritores que se sentam e escrevem, escrevem, de forma rápida e límpida, parecendo sempre inspirados. Para mim foi difícil – é difícil – descobrir o caminho. Comecei ao lado de grandes nomes e a sua grandiloquência aterrava-me. Da minha secretária de estagiária via jornalistas como o Fernando Assis Pacheco, o Afonso Praça ou o Cáceres Monteiro a discutirem o que se passava no mundo e ficava fascinada. Lembro-me de ir espreitar as provas dos seus artigos, antes de seguirem para a gráfica, e de terminar a leitura daqueles papéis imaculados, sem anotações dos revisores, com vontade de fugir. “Isto foi um engano, nunca vou conseguir escrever assim, obrigada pela oportunidade, adeus.”
Felizmente, a redação da VISÃO, onde comecei a trabalhar no verão de 1995, não tinha apenas jornalistas excecionais – tinha mentores com bom coração e grande espírito de camaradagem. Ensinaram-me muito. Acreditaram em mim. E por isso lhes estarei sempre grata.
“Isto está bom, miúda”, disse-me o Cáceres Monteiro, numa tarde daquele primeiro verão quente, agitando na mão uma folha cheia de anotações a um dos primeiros textos que escrevi. “Tão bom que não tenho coragem de não te pagar”, continuou, estendendo-me um envelope. Era o meu primeiro ordenado. Eu entrara para cumprir um estágio não-remunerado e o dinheiro era muito bem-vindo mas a grande recompensa não era a verba inscrita naquele cheque. Era o facto de ele o querer ter assinado, reconhecendo valor no meu trabalho.
Nos anos que se seguiram, passou-me vários “cheques em branco”, apostando em mim para cobrir grandes acontecimentos internacionais. E deu-me conselhos, partilhou contactos, ofereceu-me livros. Quando saía em reportagem, ligava-me para saber se eu estava bem, se precisava de alguma coisa, ou apenas para conversar. Era um diretor muito presente, um ser humano especial. Nunca consegui perceber como fazia, mas ele sabia tudo o que se passava na vida de cada um de nós: se o filho estava doente, se o marido andava com chatices no trabalho, se a avó ia ser operada à anca. Para todos tinha uma palavra, uma atenção. É também por isso que os que com ele trabalharam continuam a evocar o seu nome com saudade.
Lamento não ter conseguido aprender mais com ele, o melhor repórter de todos nós. Tenho pena de não lhe ter dito mais vezes como era importante o seu exemplo e a sua motivação, a cada dia de trabalho. Sinto até saudades de não ser acordada às 3 ou 4 da manhã, para ouvir do outro lado:
– “Estás a ver a CNN?”
O que diria o Cáceres da guerra na Síria, dos ataques terroristas do Daesh, da crise dos refugiados na Europa?
Faço este tipo de perguntas muitas vezes, apesar de já passarem dez anos sobre a sua morte. Sei que não terei resposta e também que não vou voltar a vê-lo aproximar-se, de sorriso aberto, dizendo: “Isto está bom, miúda”. Mas é nele que penso sempre que agarro uma reportagem. Foi a sua paixão contagiante pelo jornalismo que me fez querer fazer mais e melhor – e enfrentar com alegria o cursor intermitente, no ecrã em branco.