“Liberdade ou morte”. Esta era a inscrição na t-shirt que Luaty Beirão usava quando o fotógrafo João Pina fixou o seu retrato, em 2012, sentado à beira mar. Sempre que ouço o nome do músico luso-angolano, recordo essa imagem. Talvez porque hoje, embora o seu frágil corpo definhe numa bata de hospital, ele continue de forma determinada a vestir essa camisola.
Luaty, 33 anos, filho da elite angolana, estudou Engenharia Electrotécnica em Inglaterra e depois formou-se em Economia, em França. Poderia estar hoje sentado nalguma cadeira de poder, numa grande empresa ou numa universidade. Mas não conseguiu fechar os olhos às “injustiças” cometidas contra o seu povo, rebelou-se e passou a usar a música como arma de intervenção. Acabou preso com outros 14 angolanos que se reuniam num apartamento em Luanda, em junho, à volta de dois livros: “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura – filosofia política da libertação para Angola”, escrito pelo jornalista Domingos Cruz (também ele detido), e a obra que inspirou este primeiro título, o ensaio “Da Ditadura à Democracia”, escrito em 1993 pelo norte-americano Gene Sharp, várias vezes nomeado para o Prémio Nobel da Paz, e que recomenda estratégias para combater regimes ditatoriais de forma pacífica.
Para o Ministério Público angolano, foram apanhados em “flagrante delito” quando preparavam “um golpe de Estado”. Continuam em prisão preventiva além dos 90 dias previstos na lei e essa é a razão que leva Luaty Beirão a manter o seu protesto. Quer aguardar em liberdade o julgamento, marcado para 20 de novembro.
O músico está em greve de fome há 32 dias. Perdeu mais de 20 quilos. Poderá o seu corpo aguentar mais um mês? A mente, já se percebeu, não vergará. Até porque o ativista não tem hoje qualquer vontade de comer – esse desejo desaparece nos primeiros dias, quando o corpo se resigna e entra em “modo de sobrevivência”, produzindo glicose a partir das reservas de gordura e músculo. O organismo clama por alimento de outras formas: surgem tonturas severas, perda de coordenação, baixa frequência cardíaca e sensação de frio. Muito frio. Tudo se agrava se não houver ingestão de líquidos – o que aconteceu no caso do angolano, durante vários dias.
Após um mês de jejum, explica-se na revista médica The Lancet, começam a surgir complicações graves e permanentes. Podem ocorrer danos neurológicos, a respiração começa a tornar-se mais difícil, há perda de audição e visão e pode desencadear-se a falência em cadeia de vários órgãos. Os principais problemas devem-se à falta de potássio, magnésio, fosfato, sódio e tiamina (vitamina B1), que não temos capacidade de produzir. Numa pessoa saudável, a situação pode ser gerida até às seis a oito semanas. Depois, dispara o risco de coma, de infeção generalizada ou de colapso cardiovascular.
A alimentação forçada de um prisioneiro em greve de fome é proibida pela Convenção de Genebra e também pela Associação Médica Mundial. Angola tem respeitado o desejo do ativista, limitando-se a acompanhar a sua situação clínica. Ele aceitou ser transferido para um hospital mas apenas para receber hidratação salina. Na semana passada, e perante o agravamento do seu estado de saúde, assinou uma declaração onde recusa receber assistência médica “na eventualidade de atingir o estado de coma ou desorientação cognitiva”, salvo se a recuperação for “ainda realizável sem danos que obriguem a uma existência vegetativa”. O seu desejo, acrescentou, é ser cremado e que as cinzas sejam lançadas ao mar. O mesmo mar que emoldura o seu olhar determinado na fotografia de João Pina, e que permanecerá para sempre em mim, aconteça o que acontecer nos próximos dias.
O regime angolano mantém-se irredutível, embora seja evidente que a ameaça que viam neste grupo de jovens só foi exponenciada com a sua detenção. Apesar de serem consideras “ilegais”, as manifestações a pedir a libertação destes prisioneiros multiplicam-se em Luanda – algo impensável antes do verão. Uma petição lançada pela Amnistia Internacional reuniu já 36 mil assinaturas e juntam-se cada vez mais pessoas nos protestos em Portugal (hoje há mais um marcado, em frente à embaixada angolana). Ironicamente, a poucos dias da celebração dos 40 anos da independência de Angola, Luaty Beirão conseguiu, de forma pacífica (à semelhança do que fez Gandhi, na Índia), virar as atenções do mundo para as fragilidades e inconsistências da democracia no seu país.
Conscientes do movimento de contestação que cresce de dia para dia, os outros 14 ativistas detidos escreveram ontem ao amigo instando-o a terminar a greve de fome porque precisam dele vivo para continuarem a luta. O pedido, contou hoje a mulher de Luaty, não o demoveu. Nem os apelos da filha o fazem vacilar. Por mais que nos incomode a serenidade com que prossegue a sua luta, esta é a causa que o move, desde há muito tempo: “liberdade ou morte”. Esperemos que vença a liberdade.