Escrevo esta crónica na quinta-feira, dia do referendo inglês. Imaginei só escrever a crónica amanhã, depois de saber o resultado. Mas pensei melhor e cheguei à conclusão de que estamos todos dependurados numa resposta, quando, à semelhança dos velhos gregos, diria que o que interessa é a pergunta: que fazer com a Europa? Deduzi assim, porventura mal, que o resultado não interessa para coisa alguma.
A discussão que apaixona o Reino Unido baseia-se na essência do mal que destruiu a Europa: o nacionalismo. E é este, para mim, o cerne da questão.
Sou europeísta, penso, pelas razões profundas que deram origem à União Europeia: esquecer as pequenas guerrinhas culturais, nacionalistas, culturalistas e unir esforços para salvar a civilização (dizer ocidental é, para mim, um pleonasmo). Olhando um pouco mais à frente, diria que para salvar a humanidade (com minúscula, pois escrevo de acordo com antiga ortografia; parece que, hoje em dia, já não existe a maravilhosa distinção entre a humanidade e a Humanidade).
Antes de morrer, no que penso ter sido o último programa do antigo «Cosmos», Carl Sagan afirmou, em frente das câmaras, o seguinte: «Os velhos apelos ao chauvinismo racial, sexual e religioso, ao furioso fervor nacionalista, estão a começar a não resultar. Uma nova consciência começa a desenvolver-se, que vê a Terra como um só organismo; e reconhece que um organismo em guerra consigo próprio está condenado.» Pelos vistos, o grande homem estava enganado. E o «fervor nacionalista» não abrandou. No entanto, creio que Sagan ilustra bem o primeiro desígnio de quem inventou a «Europa». Apenas acontece que hoje, como em todos os domínios da nossa pequena vida, é só a economia que interessa. Digo pequena, não por ser um ignorante da demografia, mas por me lembrar de uma frase do Vergílio Ferreira: «a vida humana estendeu-se, mas o que havia nela encolheu.». Assim, sou europeísta porque sou pelo Homem, em detrimento dos países, dos hinos, das bandeiras, da mesquinhez e até, em última instância, das regiões. Sou europeísta porque ainda não consigo ser, verdadeiramente, cidadão do mundo.
Quanto ao referendo, é muito simples: se ganhar o sim, o parlamento do Reino Unido não é obrigado a concretizar a saída. Pode ficar apenas o susto. Os próprios apoiantes do «brexit» não querem verdadeiramente sair. Por razões económicas. Apenas querem ganhar votos à conta de um nacionalismo que delicia os mais velhos e os menos instruídos. Mas, com o susto, é possível fazer as instituições europeias perceber que a verdadeira Europa morreu e é preciso reinventá-la. É certo que Juncker e Hollande, como representantes-tipo dessa Europa moribunda, já vieram dizer que se o Reino Unido decidir sair é para sair mesmo. Mas, pergunto, quem leva a sério o que dizem esses dois senhores?
Se o não ganhar, das duas uma: ou a Europa se reinventa – e afasta rapidamente a pequena gente que destruiu o ideal europeu – ou já se percebeu que os «exits» vão começar a acontecer nos mais variados países.
Em suma, ganhe o sim ou ganhe o não, a Europa tem duas soluções: ou coloca a filosofia acima da economia, e os ideais humanistas duradouros acima dos lucros efémeros, ou desaparece. Para dar a volta, a Europa precisa de grandes seres humanos, homens ou mulheres. E, para tal, é possível que tenha de alterar todo o «sistema». Até porque, muito provavelmente, tem de os procurar fora da partidocracia.
Se a Europa não mudar, não são estes referendos que a vão destruir. Vão apenas mostrar a todos que ela já estava totalmente destruída. Mais: os responsáveis pelo estado a que Europa chegou são também responsáveis pela morte do sonho europeu, e com esta, do revivalismo de um nacionalismo que, para mim, apela ao mais baixo do ser humano: a convicção de que somos mais do que os outros sem precisar de o mostrar com factos e resultados de desempenho concreto.
É como a nossa selecção de futebol: se já toda a gente sabe, por definição, que somos os maiores do mundo, qual a necessidade de nos esforçarmos a fundo para o demonstrar?
A grandeza existe por definição; nasce dos actos dos homens.