Celebrou-se, há poucos dias, o quarto centenário da morte do espanhol Miguel de Cervantes e do inglês William Shakespeare. Morreram quase no mesmo dia. Há uma questão de calendários diferentes, mas é irrelevante. O que importa é que foram agora recordados como os maiores génios literários de todos os tempos. E, inevitavelmente, surgiu a comparação entre os dois. O Público apresentou uma peça muito interessante, citando Turguenev e Harold Bloom, que tentou diferenciar as obras, sobretudo opondo Hamlet ao Quixote. Por exemplo, associando Cervantes/Quixote à comédia e Shakespeare/Hamlet à tragédia; ou distinguindo o «altruísmo» extrovertido do espanhol do «egotismo» introvertido do inglês. Mas, ao fim de algum tempo, senti que a comparação deixou de ser feita ao mesmo nível e que Shakespeare (que recebeu muitos apoios do governo inglês para as suas comemorações, coisa que o governo espanhol não fez) subiu um degrau do pódio, acabando por se ler, nas gordas, algo como o seu «perene estatuto de maior criador literário de todos os tempos». Perguntei-me se tal seria justo…
Gostaria de não ceder à tentação de fazer uma escolha, de declarar uma preferência. E vou tentar fazer uma comparação o mais «objectiva» possível.
Em primeiro lugar, Cervantes é um romancista e Shakespeare é um dramaturgo (também poeta, mas o teatro predominou). Dir-se-á que esta distinção é pouco fecunda do ponto de vista analítico, mas eu tentarei mostrar o contrário.
Em segundo lugar, ambos retomam géneros literários com mais de dois mil anos (teatro e romance – vou aqui considerar os poemas épicos como romances), mas enquanto Shakespeare adapta a tragédia grega, Cervantes cria uma forma de romance completamente nova. De facto, a tragédia do inglês é decalcada da grega. É certo que não há coro, não há deuses, nem gigantes nem titãs, mas mantém-se a essência da tragédia: a Moira grega; o destino traçado; a sensação, desde o primeiro minuto, de que nada pode alterar o decurso, trágico, dos acontecimentos. Em contrapartida, Cervantes cria o romance moderno, usando uma transformação
radical. Na prática, substitui a lógica das historietas de enredo, que se vão desenrolando em peripécias que nos envolvem como se os acontecimentos nos dissessem respeito e nos fazem sofrer de suspense até conhecer o desenlace, por uma vivência perturbante de cada momento, uma visão emocionada de um mundo outro – com outras regras, irreal –, de um sonho absurdo que nos desenraíza.
Em terceiro lugar, associo o inglês a uma solidão quase existencialista focada numa reflexão profunda, filosófica, sobre os limites do ser humano, sobre a impossibilidade do amor e do mundo como local habitável, enquanto olho para o espanhol e vejo a superação do homem através do impensável, ou seja, dessa «ruptura em relação ao real» (Malraux) que marca o nascimento da verdadeira arte (e, neste caso, da modernidade na literatura). Em duas linhas, oponho a reflexão sofrida e desencantada – sobre a pequenez da condição humana e o amor perdido – de Shakespeare à exaltação vibrante da arte – excesso que resulta na transfiguração do próprio homem – de Cervantes.
Pergunto, então: como é possível sentir uma supremacia de Shakespeare?
Na minha opinião, por uma razão extremamente simples: a proximidade. O teatro foi o meio privilegiado que as massas tiveram de acesso à literatura. Desde os gregos. Tal como a ópera o foi na música. Estes espectáculos tinham todos os ingredientes necessários para uma comunicação imediata, que o cinema veio, mais tarde, dilatar; e a televisão, por fim, elevar à perfeição. Ver uma peça de teatro ou ver um filme é infinitamente mais directo e cómodo do que ler um livro. Mas ainda dá trabalho, é preciso sair à rua. Agora pense-se na facilidade com que as peças de teatro, os filmes, ou as novelas, nos entram dentro de casa sem pedir licença. É por isso mais fácil conhecer e admirar um dramaturgo do que um romancista.
O problema é que essa proximidade é perigosa: afastou-nos da distância que Cervantes inventou. E fez voltar o «romance de cordel», hoje chamado telenovela. E aí, sou levado a esta pergunta final: seriam Hamlet, ou o rei Lear – já para não falar de Romeu ou de Julieta –, adaptáveis a personagens de uma telenovela de televisão? E poderia o Quixote sê-lo? As respostas são diversas: positiva, no primeiro caso, e negativa, no segundo. A diferença óbvia das respostas está na ligação, da positiva, ao mundo «de aqui» e, da negativa, à irrealidade de um mundo imaginário. Ora é precisamente essa diferença que marca o selo indelével da arte.