Os tempos recentes têm sido pródigos em material interessante para discutir a diferença entre legitimidade e legalidade: Maria Luís Albuquerque e o seu trabalho extraparlamentar, o Brasil e a nomeação de Lula para ministro, os «Panamá papers», eu sei lá…
Gosto de discutir conceitos, ideias, e não casos concretos. Pelo que me vou interrogar sobre a diferença entre os dois conceitos acima e pensar se devemos privilegiar o primeiro ou o segundo.
1. Primeira pergunta: faz sentido a diferença entre os dois conceitos, ou eles deveriam fundir-se?
A legitimidade é muito mais ampla do que a legalidade, por mais leis que existam. Não se pode legislar tudo, para todas as situações possíveis. Logo, o legítimo figurará como uma reserva mais abstracta, passível de concretização a cada momento. Neste sentido, a legitimidade funde-se com a ideia de Ética e deveria ser a base da legalidade, ou seja, deveria ser o instrumento necessário para a construção das leis. Por estas razões, os conceitos não se podem fundir.
2. Segunda pergunta: faz sentido pensar a legitimidade acima da legalidade? Ou antes a legalidade acima da legitimidade?
Se a legitimidade se fundir com a ideia de Ética, e for a base da legalidade, é possível pensar que está acima da legalidade. E esta deve concretizar o legítimo.
No entanto, a legitimidade nem sempre é consensual. Nem sempre se identifica apenas com as regras globais e civilizacionais da Ética e dos Direitos Humanos. Vai, frequentemente, para além disso. E torna-se subjectiva. Podemos ilustrar esta subjectividade recorrendo aos exemplos concretos acima. Há quem encontre legitimidade na situação de MLA e quem não a veja. O mesmo se passa com Lula ou com as offshores. E estou a referir-me a opiniões de residentes num mesmo país, com alguma homogeneidade cultural ou religiosa. Agora, imagine-se os casos em que há confronto de culturas. Os árabes acham tão legítima a burka como os judeus a circuncisão, como certas etnias africanas a excisão feminina ou a colocação de anéis no pescoço para o esticar. E eu não acho nada disso legítimo. Nestas circunstâncias, a única solução que posso preconizar é que a lei siga apenas as tais regras globais e civilizacionais da Ética e dos Direitos Humanos – e não o que uns e outros acham legítimo – e proíba esses atentados à dignidade do homem (quando são impostos, claro, às crianças; se um adulto decidir ficar com um pescoço de 50 cm, ninguém tem nada com isso). Quero com isto dizer que a legitimidade pode estar imbuída de culturalismo. Ou de estratégias políticas utilitárias. Nuns casos, a lei vai atrás. Noutros, resiste. De qualquer forma, penso que, nestas situações – tanto relativas a estratégias culturais como políticas –, a lei deve prevalecer.
3. Terceira pergunta: como devemos então agir perante legalidades e legitimidades contraditórias?
Três situações-tipo para orientar o que penso:
– Num país democrático e desenvolvido – entendo por desenvolvido aquele em que a ideia de civilização predomina sobre a de cultura –, é indiferente, pois o legal e o legítimo deverão coincidir; quando não coincidem, é por falha da lei e o legítimo deve sobrepor-se;
– Num país democrático menos desenvolvido, onde a ideia de cultura predomina sobre a de civilização, devemos seguir a lei, o legal; no entanto, devemos estar sempre preocupados com uma reflexão filosófica sobre as leis que deveriam existir (à luz da legitimidade consensual para quem privilegia os Direitos Humanos) em detrimento do respeito cego pelas leis que existem;
– Num país não-democrático ou a fingir que é democrático, fugimos para outro país; ou tentamos derrubar o regime, sempre com a Declaração dos Direitos do Homem, e a Ética enquanto ramo da Filosofia, na cabeça.