A confusão política (com contornos jurídicos que conheço mal) que se instalou no Brasil é da maior gravidade. Uma das razões que me leva a dizer isso, é o fantasma que já paira de uma ameaça à democracia e de uma reposição das velhas ditaduras da América Latina. Na minha opinião, toda esta situação resulta de dois efeitos em interacção.
Em primeiro lugar, uma mentalidade governante caracterizada por duas falácias, que, embora existindo em toda a parte, são aqui exacerbadas: a convicção de que os fins justificam os meios e uma sensação de superioridade moral própria de uma certa «esquerda». Assim, vou tentar retratar, neste enquadramento, o que penso passar-se na cabeça dos governantes (sendo bonzinho, isto é, afastando quaisquer intenções ligadas à ganância do poder ou do dinheiro obtido de forma corrupta). Assim, eu (colocando-me na pele do governante) estou perfeitamente convencido de que o meu governo é a melhor hipótese para o bem do povo. Aliás, penso até que eu e a minha gente somos os únicos que gostamos do povo, dos pobres e dos oprimidos. Todas as outras hipóteses políticas seriam um desastre de maldade para o cidadão. Assim sendo, temos de garantir que o nosso poder continua. Seja de que forma for. Não é por nós, é pelo povo. Para tal, temos de usar quaisquer meios, mesmo que sejam indignos. Porque, acima de tudo, está o bem do povo, que só nós podemos assegurar.
Para mim, foi esta a mentalidade das governações comunistas de século XX e a causa das ditaduras «necessárias» e dos milhões de mortos que se seguiram.
Em segundo lugar, começo por dizer que toda a vida ouvi dizer maravilhas do Brasil. Deve ser lindo. Tem uma música que adoro – e que inclui uma poesia extremamente inovadora que muito admiro. Tem o pulmão do mundo, que deve ser desmesurado de imponência. E deve ter muito mais que gostaria de visitar e desconheço, pois não me revejo de todo na valorização do Carnaval ou do futebol. Quero, assim, explicar que percebo o orgulho que os brasileiros têm no seu país.
Tal como os portugueses têm orgulho no seu país-filho, ou país-irmão. Talvez por ser um país com potencialidades ilimitadas, que nasceu de nós e fala como nós.
No entanto, penso que o orgulho identitário pode ser nocivo e deve ser relativizado. Em todos os países. Mas talvez especialmente no Brasil. Retomando a teses das enormes potencialidades do país, devo dizer que, na minha opinião, não se concretizaram. Nem vejo concretização possível tão depressa. E, se queremos que elas concretizem, devemos pensar de outro modo. Devemos pensar, não no que é motivo de orgulho, mas no que o país deve corrigir. Por exemplo, nunca fui ao Brasil. E não quero ir. Isto, por uma razão simples e prática – não tem nada de moral ou filosófico: tenho medo. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, em 7.º lugar mundial nas maiores taxas de homicídios, quer totais quer entre jovens.
Os brasileiros precisam urgentemente de perceber que o Brasil não é o país mais fantástico do mundo. Apresenta um índice de desigualdade na distribuição da riqueza (Gini) de 55%, quando nos países desenvolvidos este valor não chega normalmente aos 30% (mais de 60%, só na África do Sul e no Botswana). Nos estudos da OCDE sobre as capacidades dos jovens de 15 anos (PISA), fica nos últimos lugares de uma lista de 65 países. Tanto na «leitura», como nos conhecimentos científicos, como na Matemática, os resultados são desastrosos. Nesta última, a percentagem de miúdos que não atingiram, em 2012, o «nível de desempenho mínimo aceitável» (nível 2, texto da OCDE) é de 67%, quando em Shangai, em Hong-Kong e em Macau, essa percentagem não excede os 11%.
Assim, o problema do Brasil, antes de ser o atraso provocado pelo passado de ditadura – e que já paira de novo no horizonte –, é a ditadura do passado que mantém no presente: a eterna lengalenga do «sempre foi assim», ou do «nós somos assim», ou do «somos os maiores». Os brasileiros deviam travar a sua tradição de orgulho e iniciar o caminho árduo do futuro, com escola a sério, estudo, conhecimento, competência, muito trabalho e todas essas palavras ou frases que só de pensar nelas se fica com dor nas costas.
Só fugindo à ditadura da ignorância o Brasil pode fugir à desigualdade, à violência e aos governos-fantoches, de «esquerda» ou de «direita», que sempre ameaçaram – e ainda ameaçam, veja-se o caso da Venezuela – a América do Sul.