É hábito fazer grandes elogios às pessoas que morrem. Sobretudo quando desaparecem mais ou menos prematuramente. O passado está cheio de ídolos que só o são porque, por exemplo, morreram jovens: o caso do actor James Dean é um dos mais referidos.
Numa outra esfera, é também costume os políticos e os fazedores de opinião dizerem frases grandiosas a respeito de sujeitos que ainda no dia anterior ao do falecimento desconsideravam. Percebo que é deselegante criticar pessoas que acabam de desaparecer. Mas não é preciso ser hipócrita. É frequentemente possível ficar calado quando se acha que o defunto não merece o esforço.
Não é este o caso que me ocupa hoje, pois o David Bowie merece, na minha opinião, mais homenagens do que o que se poderá à primeira vista pensar.
Talvez a minha homenagem principal se centre na dissipação de um equívoco. Quase todos falam de Bowie como o «camaleão». E suspeito que, em grande parte, essa colagem lhe seja feita devido à imagem (roupa, penteados, maquilhagem, etc.). Noutros casos, o camaleão servirá também para ilustrar uma transformação musical muito frequente.
No caso do guarda-roupa, cabeleireiro e afins, não sei pronunciar-me. Mas no caso da música, a minha percepção vai precisamente no sentido inverso do que é habitual. Com efeito, se entendermos o camaleão como o animal que se adapta à cor do terreno, mimetismo em relação ao solo que pisa, seremos obrigados a considerar esse animal como um «imitador» do meio em que vive. Ora Bowie foi precisamente o oposto, pois esteve quase sempre à frente do seu tempo. Por essa razão, foi o «meio» que se foi sucessivamente adaptando a ele, coisa de que não gostava e que o impelia a inventar, de forma sistemática, um caminho novo. Se transformação permanente houve na música deste homem, foi no sentido de uma inovação permanente, muito personalizada em conteúdo – embora, por vezes, muito delirante nas formas também –, que o fez variar de som com uma facilidade incrível.
Logo para começar, na voz. Apesar do seu timbre inconfundível, Bowie conseguiu cantar, com naturalidade, todas as extensões vocais imagináveis, das mais graves às mais agudas. E por vezes no mesmo trecho musical.
Mas é, claro, a nível da composição que mais surpresa nos causou.
Não sei dizer qual foi o «estilo» de Bowie. Neste campo, a diversidade foi imensa. Existiu a «pop» mais ou menos inicial (dos primeiros álbuns); existiu o «rock», independentemente das parcerias com os Rolling Stones ou os Queen; existiu uma música alternativa, para dançar; existiu ainda, e resumindo, a quase balada, o quase «soul», o quase «funk», ou o quase «prog» (rock progressivo); … eu não sei. Foi todo um Universo de sons e de experiências que tiveram um momento especialmente feliz – gostava de o realçar – na colaboração, mais «techno» e minimalista, que fez com o Brian Eno. Em Low e em Heroes. O Philip Glass fez uma homenagem grandiosa a Bowie (e a Eno) quando compôs duas sinfonias a partir destes dois discos. São dois outros discos notáveis, sobretudo a Heroes symphony.
Mas Bowie foi também percursor de outras coisas. Dou apenas como exemplo a destabilização que causou nos rígidos padrões de orientação e identificação sexual que existiam na época.
E foi actor competente (pelo menos) num grande filme (Feliz Natal, Mr. Lawrence), de Nagisa Oshima, onde contracenou com o genial colega músico Ryuichi Sakamoto, que compôs a lindíssima banda sonora.
Bowie quis ser belo para homens e para mulheres e produziu trechos musicais de elevadíssima sensualidade e beleza. Foi inovador, abriu portas e deixou cortejos de discípulos e de seguidores. E quando um homem como P. Glass, saidinho da música erudita contemporânea, escreve duas sinfonias em homenagem a um compositor, é porque este não merece que lhe chamem camaleão.