Há tempos, trouxe à VISÃO expressões linguísticas próprias açorianas, incomuns noutras latitudes do território nacional. Hoje, rebusquei o passado nas gavetas lá de casa, onde não me canso de escarafunchar, e encontrei um livro da autoria de uma querida amiga de infância, que infelizmente nos deixou cedo demais, uma ex-professora da Universidade dos Açores, que chegou a ser vice-reitora da instituição de ensino superior açoriana, a Doutora Fátima Sequeira Dias.
Sequeira Dias nasceu em Ponta Delgada (1958 – 2013). Licenciou-se em História, em 1981, fez o mestrado em Economia do Desenvolvimento, na Universidade Livre de Bruxelas; ainda na capital belga, concretizou uma pós-graduação em História da Europa Contemporânea, depois cursou o Instituto de Estudos Europeus, em Bergen e, em Genebra, o Centro de Economia Internacional.
A estimada Fátima, para além de brilhante académica, foi uma micaelense “dos quatro costados”. Era manifesta a sua devoção pela ilha de São Miguel, sua terra natal, que amou incondicionalmente, ao ponto de, em boa hora, doar a sua biblioteca particular à Câmara Municipal de Ponta Delgada.
Fátima Sequeira Dias intitulou este livro de bolso, “chinchinho”, como ela o designava por ser pequenino, de “Dicionário Sentimental da Ilha de São Miguel de A a Z”, saindo agora em quarta edição com chancela “Publiçor”. “Os livrinhos venderam-se a eito”, observou então, certamente agradada, a autora.
O desenho de um ananás antes do início da obra, fruto exclusivo da ilha de São Miguel apreciado em todo o mundo, é indicador que a abordagem da autora dá a conhecer somente expressões do linguajar micaelense. Conheça algumas delas, as mais usadas, e ousadas, nesta ilha açoriana do paralelo 38, que muitos portugueses do continente não entendem, mas que hoje certamente passarão a entender. Vamos a isso?
Aboiar – “Atirar para o chão propositadamente alguma coisa. O chão significa para o caminho, para a rua, porque nas casas micaelenses reina a limpeza e a ordem.”
À cata de – “Estar à procura de alguém ou de alguma coisa. Percebemos logo quando uma jovem está à cata de namorado.”
Aço – “Vontade. Pachorra. Paciência. Utiliza-se geralmente na negativa.”
Aduelas – “Costelas. Sofremos com frequência delas e por causa delas.”
Albói – “Uma corruptela de claraboia.”
Arredouça – “Baloiço.”
Arrematada – “Uma dona de casa limpa, prendada.”
Atoleimado – “Ter ar de parvo. Não significa necessariamente que se nasceu com tal aspecto.”
Baboso – “Um pateta, quando dito de forma carinhosa. Baboso pelos filhos, pela mulher … Um idiota, quando dito de forma pejorativa.”
Bagoucha – “Nome dado aos gorduchos.”
Belica – “Órgão genital masculino. Falamos dela frequentemente, havendo sempre alguém para recomendar aos adolescentes:
– Cuidado. Não constipes a belica! …
Também se conta que alguém com responsabilidades na política local gostava de pedir nos restaurantes em Lisboa uma belica frita. Quando o empregado esclarecia que não tinha, ele respondia: Isso eu logo percebi!”
Besuga – “É uma mulher atraente, sensual e bonita.”
Biqueiro – “Alguém com pouco apetite.”
Boca santa – “Interjeição para dizer que concordamos com o nosso interlocutor.”
Botar sentido – “Tomar atenção a uma tarefa.”
Calafonas – “De regresso à ilha, todos quantos tinham emigrado para os Estados Unidos da América eram conhecidos pela forma jocosa de calafonas, numa alusão estropiada aos habitantes da Califórnia.”
Carro de praça – “Táxi.”
Comichoso – “Egoísta.”
Consumição – “Apoquentação.”
Corisco mal amanhado – “O que parece um insulto é, afinal, um epíteto afectuoso. Corisco é alguém que nos desassossega, que nos retira da rotina habitual.”
Courão – “Ordinário.”
Cascão – “Alguém que é ordinário, grosseiro. Tanto se aplica a homens como a mulheres, sem distinção. Ser um grande cascão (nunca se é um pequeno cascão) é não prestar para nada.
Ao contrário dos outros cascões que, secando, caem, estes nunca desaparecerão, pois, em São Miguel, quem é cascão, será cascão para sempre!”
Credo em cruz – “Generalizada entre o povo, esta antiga expressão pretende mostrar indignação ou surpresa pelo que se via ou pelo que se ouvia.”
Bolo lêvedo – “É uma espécie de “bolo do caco” madeirense, mas açucarado. Os mais saborosos são feitos nas Furnas, o único lugar que os produzia até há pouco tempo.”
Dar um ensaio – “Dar uma sova.”
Derriço – “Doidice de cariz amoroso com forte pendor sexual.”
Desapega-te – “Larga-me. Deixa-me.”
Destarelado – “Alguém que não tem tarelo.”
Laparoso – “Há micaelenses que dividem as pessoas em dois géneros: os laparosos (os maldosos) e os sagrados (os bondosos). Não é raro sermos ouvidos com atenção, sendo interrompidos com a palavra “sagrada.”
Intenicar – “Picar alguém. Arreliar. É costume os irmãos intenicarem uns com os outros. Dizem que esta prática também é comum nos casamentos prolongados …”
Fraco da braguilha – “Aquele que “prevarica” com alguma insistência.”
Gaitadas – “Gargalhadas ruidosas. As mulheres entre si dão muitas gaitadas.”
Fogo te abrase! – “Raios que te partam! Não me chateies, praga!”
Fim do mundo em cuecas – “Dizemos a propósito de um acontecimento nunca visto. O fim do mundo já é assustador. Em cuecas ainda é muito pior.”
Fema – “É a forma estropiada de dizer fêmea. Uma bela fema ou uma boa fema é um elogio que nem todas as mulheres podem receber. As que o recebem, apreciam-no, mesmo quando não o confessam.”
Farelagem – “Vem de farelo. Logo, não presta. Rafeirada. Gente de má índole. As mães aconselham os filhos a não se aproximarem da farelagem.”
Tirar uma chapa – “Fazer uma radiografia. Hoje não há “doutor” que não nos peça uma chapa.”
Tapona – “Bofetada.”
Estás cegando – Estás a tirar-me o juízo. A aborrecer-me. Fico cega para te responder e para te dar um ensaio.”
Falar à moda – “É a expressão que se emprega à maneira de falar dos continentais.”
Dia de São Vapor – “Este era o dia em que o barco da Empresa Insulana de Navegação atracava no porto de qualquer das ilhas do arquipélago. Quanto mais pequena e periférica era a ilha, maior era o alvoroço entre a população pela chegada do vapor.”
Dia da pombinha – “Houve um tempo nos Açores – o chamado “tempo de Mota Amaral” (Mota Amaral foi o Presidente do I ao V Governo Regional dos Açores, 1976-1995), em que as grandes obras públicas inauguradas tinham de ser sagradas. O Hospital de Angra do Heroísmo sendo o Hospital do Santo Espírito, o de Ponta Delgada foi o Divino Espírito Santo.
Assim, não é de estranhar que também o aeroporto de São Miguel, obra emblemática do regime autonómico, tivesse recebido a designação de Aeroporto João Paulo II, em reconhecimento pela viagem de Sua Santidade à ilha, quatro anos antes.
Dentro do mesmo espírito, ao contrário das datas oficiais, a data da Comemoração da Autonomia, o dia dos Açores, não tem uma data certa, porque segue o calendário litúrgico. O dia dos Açores, é, assim, a segunda-feira de Pentecostes, designada nos Açores como o dia da Pombinha.”
Destrocar – “Trocar.”
Correr roupa – “Este é o termo utilizado para engomar. Passar a ferro.
Conta-se que uma rapariga, servindo como criada uma patroa continental, perguntava-lhe todos os dias se podia correr. A patroa, desconhecendo a expressão, ficava alarmada com o pedido e respondia-lhe que não. Passaram-se os dias e a patroa, vendo a roupa por engomar a acumular-se na cesta, inquiriu a empregada sobre tal facto. A rapariga, surpreendida, respondeu-lhe que todos os dias tinha perguntado:
– Posso corrê?”
É um braçado – “Diz-se de alguém verdadeiramente bonito, interessante, atraente.”
Botar sentido – “Tomar atenção a uma tarefa. Na ilha, conseguimos a proeza de botar sentido a tudo, sobretudo às conversas que não nos dizem respeito.”
Corisquinho/a – “Admoestação carinhosa às crianças. Há também apaixonados que gostam de chamar corisquinha às amadas.”
Engalinhar – “Intenicar. Arreliar.”
Sopa de fueiro – “Fueiros são os paus que se espetam nas carroças para prender a carga. Dizer a alguém que quer sopa de fueiro é prometer-lhe uma sova.”
É de arder – “Qualquer coisa que dói. Não nos referimos a dores físicas, apenas a mágoas e a desgostos. Há decisões que são de arder… Vemos coisas que são de arder … Ouvimos comentários que são de arder … E, alguns deles ardem tanto que chegam a queimar!”
“O sotaque dos micaelenses é cerrado. É, por vezes, incompreensível. É fechado. As terminações das palavras ‘são comidas’. Eis algumas das frases que nós, micaelenses, ouvimos frequentemente dos açorianos das outras ilhas e dos continentais. Aliás, graças ao sotaque, somos logo identificados. Nas demais ilhas, somos os ‘são miguéis’. No continente, somos os únicos açorianos.”
Em Viseu, na terra dos chs…, uma rapariga que servia ao balcão de um café, ouvindo o pedido de uma micaelense de sotaque cerrado, só pôde concluir:
– Que falar exquexito!” – remata Fátima Sequeira Dias neste seu delicioso livrinho de bolso, que tanto nos apraz aqui recordar.