Tenho acompanhado, como jornalista e como cidadão, os extraordinários acontecimentos no Brasil. Tornei-me, na semana passada, um espetador atento da TV Senado, o canal que transmitiu as sessões em que participaram os 81 senadores que decidiram a cassação do mandato da presidente (Uma nota: a nossa TV Parlamento tem muito a aprender com o que fazem os seus colegas de Brasília).
Confesso, desde já, as minhas dúvidas sobre todo o processo que conduziu ao impeachement. Se é certo que Dilma Roussef é dada e tida como uma política honesta – e, reparem, isso é uma qualidade rara no Brasil e noutras paragens onde também se fala português – também é adquirido que o seu partido se transformou numa roubalheira. E como eu não sou um partidário da máxima “eles roubam mas pelo menos fazem”, acho que os extraordinários acontecimentos que envolveram e envolvem os mais altos dirigentes do Partido dos Trabalhadores no Brasil tinha de ter consequências políticas. Questiono-me, no entanto, se era este processo de impeachment de que o Brasil precisava, para exorcizar os fantasmas de uma classe política corrupta e mal preparada, mais interessada em assegurar os seus interesses do que em dirigir o país em benefício dos seus cidadãos.
A primeira razão para as minhas dúvidas é a seguinte: o processo foi iniciado por quem mais tem a perder com o procedimento judicial contra a corrupção. Eduardo Cunha, emaranhado até às orelhas no processo Lava Jato (aliás, por essa razão perdeu o seu mandato), foi o principal algoz da presidente. Decidiu dar seguimento a um processo de contornos judiciais – no qual a presidentes é “julgada” por crime de responsabilidade, ou seja, na essência, por aquilo a que os brasileiros chamam “pedaladas fiscais” – quando a natureza do “crime” de Dilma é político. Ou seja, o que havia a julgar era a governação e a responsabilidade política de um governo que atirou o Brasil para uma recessão duríssima e, numa fase de desespero, decidiu nomear Lula da Silva, apontado como suspeito no caso lava Jato, para ministro, para assim o eximir de responder de imediato nos tribunais.
Travestido de processo judicial, o que aconteceu no Senado foi um processo político. Mas como a defesa de Dilma acentuou, a questão política decide-se com eleições – é o povo brasileiro que julga nas urnas o comportamento da presidente e do(s) seu(s) governo(s) e não os títeres partidários do Senado. Se tivessem (como fizeram) retirado o seu apoio político à presidente e esta fosse incapaz de governar, os partidos que asseguravam a maioria governamental deviam sujeitar-se a eleições. Em vez disso, promoveram a presidente, sem eleições, o marido de uma mulher “recatada” e “dona de casa”, sem esquecer que Michel Temer foi também denunciado como beneficiário de financiamento ilegal aos partidos, por um delator no processo Lava Jato.
O facto de, dois dias depois da destituição, o Congresso ter aprovado legislação que legitima as chamadas “pedaladas fiscais” que serviram de álibi para afastar Dilma, também em nada contribui para dissipar as suspeitas de que o que aconteceu em Brasília foi um golpe. A lei 13.332/2016 permite agora a Temer fintar o Congresso para a abertura de créditos suplementares, ou seja, despesas suplementares às aprovadas no Orçamento. Nem se pode dizer que tenha sido bem urdido, o golpe, face ao desplante com que a classe política brasileira se comporta: o que levou Dilma ao cadafalso e serviu de justificação para a afastar é 48 horas mais tarde permitido a Temer. O desabafo do jurista brasileiro Ricardo Lodi, que integrou a defesa de Dilma, diz tudo: “Não tiveram nem o pudor de disfarçar”.
Os brasileiros devam extrair destes acontecimentos todas as consequências. Está na hora dos partidos mudarem ou de o PSDB, o PMDB e o PT irem às urtigas. Dizia Elis, “viver é melhor do que sonhar”. Para que o sinal não se feche para os brasileiros, é bom que se lembrem desta lição nas próximas eleições, já em dezembro.