Marcelo Rebelo de Sousa conduziu uma campanha como poucos antes dele e concordo com a maioria que lhe apontou uma inteligente e bem-sucedida transição entre a situação de presidente-eleito e a de presidente-de-facto. Mas fiquemo-nos por aqui. Perante a Assembleia da República, o primeiro discurso de Marcelo-presidente foi uma deceção.
Marcelo lembrou, por exemplo, o “amor à terra”, que evocou logo no quarto parágrafo da sua elocução, identificando-o com um dos “sentimentos […] que nos ligam a todos os Portugueses”. Ora, a que se se refere Marcelo? Desde do século XIX com mais intensidade, Portugal sempre foi um país de emigração, tendo o povo muito pouco “amor”mostrado pelo seu torrão natal. Até porque este, por ele, pelo povo, muito pouco amor mostrou. Se é de ocasião, um discurso deve pelo menos querer dizer qualquer coisa, mesmo banal, mais do que se alicerçar em mitos difíceis de sustentar por qualquer evidência científica, sociológica ou antropológica. Os portugueses têm pela sua terra, provavelmente, muito menos amor do que outros povos, sendo a mais direta evidência disso mesmo a facilidade com que partem quando encontram dificuldades.
Ainda nesse pobre trecho que de imediato me desiludiu, o nosso Chefe de Estado referia-se, dirigindo-se aos deputados, a dois chefes de Estado estrangeiros, ao líder da Comissão Europeia e, em geral, ao seu povo, à “comunhão no vibrar”. Para ele, esse é outro sentimento que nos identifica e, também aqui, muito me custa perceber a que se refere o presidente.
Tirando o ulular da segunda circular quando há jogos do Benfica ou do Sporting, o clamor da perseguição e do achincalhamento, sob anonimato, nas redes sociais, a quem ousa pensar ou escrever de modo diferente, e o apoio à independência de Timor no final dos anos 90, não me lembro de nenhum outro momento ou situação em que os portugueses tenham vibrado em uníssono. Quer dizer, houve 100 mil professores a manifestar-se contra Maria de Lurdes Rodrigues, e, alguns anos depois, umas centenas de milhares saíram às ruas contra a política de austeridade, mas duvido que fosse essa a “comunhão no vibrar” a que Marcelo Rebelo de Sousa se referia.
Esse quarto parágrafo invoca ainda “a crença em milagres de Ourique”. O presidente usou o plural, razão pela qual entendi que não se refere apenas ao dito mas a outros. O de Ourique reza, eis a palavra certa para se falar de milagres, que a D. Afonso Henriques apareceu a imagem de Cristo num ermo do sul de Portugal, uma providencial intervenção divina que lhe terá permitido vencer os exércitos comandados por cinco líderes muçulmanos. Se Marcelo quis fazer uma analogia com a necessidade de um milagre para nos fazer sair da débil situação económica em que nos encontramos, então devia ter usado a imagem noutros parte do discurso e não nesta, em que identificava os traços identitários do povo que o elegeu. E não tendo identificado os outros milagres, permito-me considerar que Marcelo Rebelo de Sousa, ao usar o plural, queria sublinhar que a crença na providência divina é um traço que nos distingue como povo. Talvez até tenha razão para descrever parte do povo que fomos e somos mas, então, para quê colocar aí a ênfase? É essa a forma como nos vê o presidente, como recetores da providência divina, como o povo que aguarda em vez de estar pronto para realizar milagres?
Bastariam as ideias contidas neste ímpar parágrafo para colocar o discurso de Marcelo na categoria dos flops maiores da oratória política nacional. É disto que o país precisa, de mitos e de milagres? Se nele não votei, está aqui dito, a verdade é que desejava adotá-lo, com a esperança de que a dose de adrenalina que dele emanasse fosse a justa prescrição para nos curar a todos de 10 anos de chá de camomila e de muitas horas de intriga política low cost em Belém.
A indigência deste parágrafo com cheiro a naftalina, contudo, foi acrescida pela de muitos outros (porque gostam tanto de discursos longos os políticos portugueses?). Sobre as escolhas difíceis, nada. Sobre a necessidade de rever uma Constituição que nos promete o paraíso socialista no céu enquanto nos obriga a penas sem fim na Terra, nem uma palavra além de um intricado articulado que, depois de espremido, diz nada: “Como toda a obra humana, [a Constituição] não é intocável, mas exige para reponderação consensos alargados, que unam em vez de dividir”. Sobre o sistema político e a sua necessária reforma (eleitoral e institucional), um tímido “temos de ir mais longe”. Obrigado, sr Presidente, vou ali num instante tomar um café para acordar.
Talvez na ação política Marcelo Rebelo de Sousa se distinga. Talvez nos surpreenda. Talvez nos catalise. Talvez faça o que é necessário e está ao alcance de um presidente. Para já, a avaliar pelo primeiro discurso, Marcelo é desilusão.