Choveu no domingo, em Albufeira. A cidade ficou um caos: lojas e residências alagadas, ruas transformadas em rios, a praia “lavada” por uma enxurrada que levou tudo à frente, até máquinas de lavar roupa. Um homem que estava a dias de completar 80 anos morreu, dentro do carro, em Boliqueime.
O novel ministro da Administração Interna, com contrato a prazo por uma semana, apareceu de rompante no Algarve e lamentou a «fúria demoníaca da Natureza». Referências religiosas à parte – embora jurem a Constituição, os governantes esquecem-se que a República é laica e que as crenças são com cada um –, o que é aqui importante é o discurso de desculpabilização. Para os governantes portugueses, quando há um desastre natural, é sempre evocado o céu, no sentido figurado ou literal.
Na verdade, Albufeira e a maior parte do Algarve sofreram um processo rápido e desordenado de urbanização. Cumplicidades várias juntaram-se: as dos empresários do setor turístico, as das Câmaras Municipais, as das autoridades ambientais do governo da República. As cidades do Algarve e do resto do país não estão preparadas para estes eventos, porque deixaram edificar em leitos de cheia, porque impediram a circulação da água nos seus cursos naturais, porque impermeabilizaram imensas áreas nas cabeceiras das ribeiras, porque encheram o litoral de mamarrachos que não deviam lá estar nem em nenhum outro lado.
Também aquando do aluvião na Madeira, em fevereiro de 2010, os responsáveis regionais se apressaram a responsabilizar a natureza quando a natureza do problema foram eles. Neste caso, nem é possível atirar para cima dos ombros de outros a responsabilidade, pois Alberto João Jardim mandou a desmando na ilha durante 37 anos e uns pozinhos. Há túneis construídos em locais surreais, que cortaram cursos de água subterrâneos; há marinas construídas na foz de ribeiras que descarregam milhares de litros de água em segundos, quando chove com intensidade; há estradas e centros comerciais construídos em cima, ao lado ou em frente de cursos de água torrenciais. Morreram mais de 40 pessoas na Madeira, nessa manhã de 20 de fevereiro, e a baixa do Funchal ficou coberta por metros de papa lamacenta.
O passivo ambiental das cidades portuguesas é enorme. Os programas polis, em vez de resolverem estes problemas, foram usados para fazer jardinzinhos e construir parques de estacionamento subterrâneos (onde os carros ficam a boiar quando chove um pouco mais). Mais lojas ficarão submersas, mais casas inundadas, mais gente morrerá – e, já se sabe, a culpa será do céu.